O Globo |
29/3/2007 |
A decisão do TSE de que o mandato legislativo pertence aos partidos políticos, e não aos eleitos, se referendada pelo Supremo Tribunal Federal, vai trazer para um novo patamar a discussão da reforma política, em que o sistema de voto em lista fechada, que fazia parte de um projeto de reforma eleitoral aprovada nas comissões da Câmara, e o financiamento público de campanha voltam a ter destaque. E dará lugar também à defesa do voto distrital misto, que aproxima o eleitor do candidato e une o voto partidário ao pessoal. O objetivo da lista era exatamente o de dar maior peso na escolha dos candidatos aos partidos políticos, levando o eleitor a olhar mais para a legenda partidária do que para seu candidato individual. Houve muitas reações, não apenas pela tradição brasileira de votar no nome do candidato, mas também porque a proposta foi feita em meio à crise do mensalão, que envolveu justamente as direções partidárias. O voto em lista, que normalmente provoca um fortalecimento das oligarquias partidárias, passou a ser visto também como mais um instrumento de corrupção das cúpulas partidárias, envolvidas no troca-troca dos primeiros anos do primeiro mandato de Lula às custas de dinheiro. Um comentário irônico do falecido político pernambucano Miguel Arraes define bem a situação: "Quanto vai custar um lugar nessa lista?", perguntava ele quando lhe falavam do sistema. Os defensores do voto em lista alegam que as cúpulas partidárias sempre tiveram força política, e que ela pode ser neutralizada, ou amenizada, por mecanismos já em prática em outros países. Em alguns deles, o eleitor pode mudar a composição da lista de candidatos, por exemplo. Outro mecanismo é a obrigatoriedade de realização de prévias partidárias para a organização das listas, o que colocaria a militância em ação. A maior evidência de que é preciso organizar a balbúrdia em que se transformou o quadro partidário brasileiro, com o troca-troca exacerbado de legendas, é o fato de que, mesmo com a interpretação do TSE de que o mandato pertence ao partido, as legendas que foram desidratadas nos últimos meses pela debandada rumo à base aliada do governo não têm a garantia de reaver a totalidade das vagas. Se não aceitarem de volta os trânsfugas, os partidos podem ficar sem muitas das vagas, pois o suplente é de outra legenda, graças às coligações partidárias nas eleições proporcionais, outra distorção do nosso sistema eleitoral. Desde a eleição a base governista ganhou 41 deputados, e mais seis trocaram de partido na oposição. Pouco menos de 10% da Câmara. Situação bem melhor que a registrada na legislatura passada, quando 38% dos deputados mudaram de legenda. A melhoria se deve à alteração dos critérios para contagem do tempo de TV e das comissões, passando a valer a bancada da eleição, e não a da posse. Mesmo assim, a base aliada do governo cooptou esses 41 deputados com promessas de nomeações no segundo escalão e aprovação de emendas parlamentares. Por ironia da política, o partido da base aliada que mais se beneficiou dessas trocas foi o novo Partido Republicano, do bispo Edir Macedo e do vice-presidente José Alencar. E quem fez a denúncia foi o antigo PFL, desde ontem Democratas. Assim como nos Estados Unidos, Republicanos e Democratas estão em campos opostos. Mas nenhum dos homônimos brasileiros tem a ver com a linha partidária de seu congênere americano. A mudança de nome da legenda, por sinal, não deverá influir no processo, segundo especialistas em direito eleitoral. Os que saíram do PFL não poderão alegar que ele já não existe, pois o Democratas é seu legítimo sucessor. Essa infidelidade partidária costumeira foi classificada pelo cientista político Amaury de Souza, no auge do primeiro mandato de Lula, como "uma burla sistemática e cada vez mais grave da vontade expressa nas urnas". O ministro do TSE e do Supremo, Cezar Peluso, disse em seu voto que "a ausência de lealdade partidária leva à descrença eleitoral e ameaça a democracia", o mesmo argumento do senador Marco Maciel, que apresentou dias atrás um projeto de emenda constitucional com o mesmo objetivo: dar ao partido a ascendência sobre o mandato. O relator Cesar Asfor Rocha foi na mesma linha de Maciel: "O candidato não existe fora do partido político e nenhuma candidatura é possível fora de uma bandeira partidária". Uma das evidências de que o mandato pertence ao partido é que apenas 31 dos 513 deputados eleitos (6,04%) tiveram votos suficientes na última eleição para se eleger sem as sobras eleitorais dos partidos. Ao contrário desse raciocínio, no entanto, uma pesquisa do Iuperj revelou que 85% dos pesquisados votaram no deputado federal independentemente do partido. A disputa para a Câmara dos Deputados é personalizada, os eleitores não punem os deputados que trocam de legenda. O sistema de voto proporcional personalizado, um dos poucos no mundo, favorece que a carreira política seja exercida como uma individualidade, e a liberalidade da legislação faz com que a relação do político eleito com o partido seja de distanciamento, tornando natural a troca de legendas de acordo com os interesses pessoais do candidato. O senador Marco Maciel, no entanto, diz que a intenção dos formuladores de nosso sistema proporcional foi desde o início de conferir aos partidos a titularidade dos mandatos eletivos. Lembra que pelo nosso primeiro Código Eleitoral, de 1932, votava-se em lista, em um número determinado de candidatos. Segundo ele, a lista sempre esteve "intuída" na legislação eleitoral brasileira. |
Entrevista:O Estado inteligente
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