Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 29, 2007

Começou a reforma política


editorial
O Estado de S. Paulo
29/3/2007

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez história. Respondendo a uma consulta do PFL - tão singela e pertinente que obriga a perguntar por que nenhuma agremiação a formulou muitos anos atrás -, a Justiça Eleitoral assestou um golpe provavelmente letal no entra-e-sai de parlamentares pelas legendas. A infidelidade partidária, como é chamada a obscenidade, detém a duvidosa distinção de representar o que há de mais nefasto nos costumes políticos brasileiros. Mantendo a tradição, a contar das eleições de outubro, 36 deputados federais bandearam-se de uma sigla para outra - quase todos da oposição para a obesa base governista, que já ocupa 376 das 513 cadeiras da Casa. O caso mais escandaloso de aliciamento, com as bênçãos do Planalto, é o do PR, cuja bancada inchou de 25 para 40 membros.Tendo perdido 7 dos seus 65 deputados, o PFL - que desde ontem se chama Democratas (DEM) - resolveu indagar do TSE algo que só os distraídos poderiam imaginar que comportasse mais de uma interpretação: a quem pertence o mandato dos legisladores pelo sistema proporcional? Aos vereadores, deputados estaduais e federais em pessoa ou às siglas pelas quais se candidataram? Textualmente: “Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito por um partido para outra legenda?” O parecer do relator, ministro Cesar Asfor Rocha, foi um inequívoco sim. Cinco outros juízes (três deles membros do Supremo Tribunal Federal) concordaram com ele. Apenas um discordou.O parecer é de uma elegância técnica a toda prova. As regras do jogo estipulam que o tamanho de uma bancada resulta do total de sufrágios dados ao conjunto dos candidatos do partido ou coligação e à legenda, dividido pelo quociente eleitoral (o total de votos válidos dividido, por sua vez, pelas vagas em disputa nas respectivas câmaras legislativas). Somente isso já demonstra que “os votos pertencem ao partido”, concluiu Rocha. “Do contrário, não teria valor o cômputo para a eleição proporcional.”

Os fatos corroboram a lógica da lei: eleição após eleição, não chega a 10% a proporção de deputados federais que conseguem se eleger apenas com os próprios votos. Na legislatura há pouco inaugurada, é o caso de 39 parlamentares, ou meros 7,6% do total. Em suma, o mandato deixa de ser visto como um bem pessoal que se possa levar de um lado para outro.

Agora, os partidos prejudicados adquirem o direito de requerer que os trânsfugas percam as cadeiras, sendo substituídos pelos próximos da fila dos seus mais votados. (A norma não se estende aos eleitos pelo sistema majoritário: presidente, governadores, prefeitos e senadores.) Curiosamente, o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou dias depois de o senador Marco Maciel, do então PFL, propor uma emenda constitucional para privar do mandato o parlamentar vira-casaca. Dificilmente a medida seria aprovada, a julgar pelos 10 anos em que tramitam, sem ser votados, projetos destinados a restringir o infame troca-troca. Agora, fazendo o que o Congresso não quis fazer para moralizar a política e fortalecer o sistema partidário, a Justiça Eleitoral foi além do que pretendiam os moralizadores. “A decisão do TSE é mais radical do que se vinha desejando”, compara o novo presidente do DEM, Rodrigo Maia. “Nenhuma proposta era tão ousada.”

É de prever que os deputados cujas cabeças serão pedidas pelos partidos aos quais foram infiéis tentarão salvá-las a todo custo. Alguns poderão até ensaiar uma envergonhada volta atrás para ver no que dá. Mas a Justiça não deverá ser sua aliada. É altamente improvável que, diante de uma demanda concreta, o tribunal eleitoral se contradiga, desconsiderando a sua decisão de princípio, adotada anteontem à noite. Tampouco se deve esperar que o Supremo Tribunal Federal, se provocado, adote uma posição divergente. “A sociedade talvez fique de alma lavada”, regozijou-se o ministro Marco Aurélio Mello, que preside o TSE.

Certamente ficará. O Tribunal Superior Eleitoral inaugurou, pelo seu item mais importante, a reforma política que o Congresso se recusava a enfrentar.

O resultado é que da noite para o dia, literalmente, o jogo político mudou de figura - e os governistas estão em polvorosa.

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