Fábio Ulhoa Coelho
Quando o ex-presidente Collor subiu à tribuna do Senado, no início de março, para proferir seu primeiro discurso, os demais senadores, fazendo justiça à mais sólida tradição daquela Casa parlamentar, trataram o colega com grande cortesia. Grande demais, porém. Perdendo-se em tanta tradição e fidalguia, alguns senadores deram apoio à reinterpretação da História intentada naquele discurso e, no dia seguinte, tiveram de explicar melhor seus apartes.
O principal argumento da reinterpretação da História foi a inexistência de condenação judicial do ex-presidente: absolvido por falta de provas pelo Poder Judiciário, a cassação do mandato teria sido um erro do Poder Legislativo.
Algumas sessões após, o senador Pedro Simon ressaltou a legitimidade tanto do mandato de que está investido, hoje, o senador Collor, como da decisão que decretou seu impedimento no longínquo ano de 1992. Ao enfrentar o principal argumento da reinterpretação da História, porém, não foi feliz: disse que condenar políticos não era da tradição do Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas deixemos as tradições de lado, principalmente se não são as mais recomendáveis, e tomemos o cerne da questão: a diferença entre os julgamentos técnicos e políticos. No julgamento técnico, realizado pelo Poder Judiciário, a presunção de inocência tem maior rigor do que no político, feito pelo Poder Legislativo. Na lógica do julgamento político, são admissíveis e consistentes certas presunções que julgadores técnicos não podem aceitar.
Veja-se o caso da cassação do ex-deputado José Dirceu. Que provas a CPI dos Correios conseguiu reunir? Indiscutivelmente, ficou provado existir um extraordinário fluxo de dinheiro, que nascia em duas instituições financeiras, passava por agências de publicidade e desembocava em costumeiros saques, em dinheiro vivo, feitos por parentes ou assessores de deputados federais no caixa de um banco. Este fluxo está mais do que provado pela CPI por meios que, na esfera judicial, serão recebidos como consistentes.
Pois bem, tomando por base as notícias de jornal, tudo indica inexistir prova tecnicamente firme de envolvimento do ex-deputado José Dirceu em qualquer das pontas desse enorme fluxo de recursos financeiros. Se o procurador-geral da República não conseguir fazer tal prova no processo judicial que se arrasta no STF, é provável que seja inocentado o apontado como chefe da “sofisticada organização criminosa”. Mas a quase certa absolvição por falta de provas, no âmbito do Judiciário, não significará que a cassação de José Dirceu teria sido indevida.
Veja-se como opera a lógica do julgamento político: provado o portentoso fluxo de dinheiro (valerioduto), não dá para acreditar que José Dirceu, em razão do grande poder político que concentrou no início do primeiro governo Lula, pudesse ignorá-lo; mais que isso, não dá para acreditar que ele não consentisse com a prática, tamanha a influência que exercia no governo e no PT; não dá para acreditar, sem forçar muito, até mesmo que não tivesse sido um dos mentores do esquema - foi esse o raciocínio em que se baseou a decisão de cassação do mandato parlamentar. Raciocínio que, sob o ponto de vista político, era perfeitamente válido, até mesmo porque a fama de poderoso tinha sido alimentada e amplificada pelo próprio cassado.
Este “não dá para acreditar” tem, em suma, todo o sentido político; contudo, reproduz uma presunção absolutamente inaceitável pelos juízes.
A lógica do julgamento político não opera apenas contra os acusados. Também o reverso acontece. Alguns deputados podem vir a ser condenados pelo STF, embora não tenham sido cassados pela Câmara. Quer dizer, conjecturando ainda em torno das notícias de jornal, parece haver provas, na CPI dos Correios, de inquestionável envolvimento de alguns parlamentares na ponta final do enorme fluxo de dinheiro. Parentes e assessores deles, indiscutivelmente, retiraram dinheiro vivo no banco, num shoppingcenter em Brasília. Submetidos a julgamento político, os colegas, em plenário, protegidos pelo voto secreto, entenderam que não era o caso de lhes infringir a dura pena da cassação.
Se cassaram o mandato de José Dirceu partindo de raciocínio político, deixaram de cassar os dos parlamentares comprovadamente envolvidos no esquema também raciocinando de forma política. A lógica, agora, adota presunção diferente: a opinião pública parecia saciada e alguma satisfação já tinha sido dada pelo ato emblemático da cassação de um importante político.
No caso do ex-presidente Collor, não dá para acreditar que ele desconhecesse e não se beneficiasse do esquema gerenciado por PC Farias. A cassação do mandato estava correta, assim como a absolvição judicial por falta de provas. Não há contradição: julgar tecnicamente um julgamento político é tão equivocado quanto julgar politicamente um julgamento técnico.
A reinterpretação da História, assim, terá de encontrar outros caminhos para desabrochar. Simplesmente alegar que não deveria ter sido cassado o mandato de Collor porque, posteriormente, a Justiça não lhe aplicou a sanção penal correspondente é, sob o ponto de vista jurídico, insustentável.
Reconhecer que o julgamento político tem sua lógica própria é importante para o regular funcionamento das instituições do Estado democrático. Mais que isso, não atenta minimamente contra nenhum direito daqueles que foram cassados o fato de não se admitirem, em juízo, presunções típicas dos julgamentos políticos. Não se pode admitir a atuação dessa lógica apenas se ela estiver a serviço de práticas antidemocráticas, como seria a cassação de mandato com o objetivo de calar minorias parlamentares. Enquanto não for esse o caso, o respeito à lógica peculiar do julgamento político contribui para o fortalecimento da democracia.
Fábio Ulhoa Coelho, jurista, é professor da PUC-SP