Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 12, 2006

RUBENS RICUPERO Vitrina estilhaçada

Em agenda dominada pela proliferação de armas, o Iraque e o Eixo do Mal, a AL é irrelevante e prescindível

A PEDRADA da candidatura da Venezuela ao Conselho de Segurança da ONU fez voar em mil pedaços a rachada vitrina da unidade latino-americana que o nosso presidente tentava esconder com fita durex. Ao contrário do que afirmou Lula no discurso da vitória, nunca o continente esteve tão dividido como agora. Mesmo no auge da crise de Cuba, havia temas unificadores: o esforço de converter a Aliança para o Progresso em alavanca de financiamento e industrialização, a criação da Alalc para integrar, sem exclusões, todos os latinos, do México à Argentina.
Não se podia prescindir da América Latina em certos problemas da Guerra Fria: Cuba, a Revolução Sandinista, as guerrilhas em El Salvador e na Guatemala. Essas questões catalisaram iniciativas da região, com o fim de evitar a invasão de Cuba, seu total isolamento ou para mediar saída pacífica para os dramas centro-americanos. Exemplos notáveis foram os grupos de Contadora e de Apoio, com papel decisivo na pacificação da América Central.
No terreno econômico, a prolongada crise da dívida externa motivou também inúmeras tentativas de coordenação. Foi a época de ouro das "ilusões criativas", projetos que ficaram aquém de suas promessas, mas que começaram a aproximar os países: do Grupo Andino ao Mercado Comum Centro-Americano, do Tratado Amazônico à Aladi, culminando com os acordos Argentina-Brasil da era Sarney-Alfonsín, semente do Mercosul.
O fim sucessivo dos regimes militares, da crise da dívida e, sobretudo, da Guerra Fria deu lugar a um paradoxo: deixados a si próprios, os latinos se paroquializaram. Não há mais interesses comuns; apenas particulares, nacionais ou de vista curta. Em agenda internacional dominada por terrorismo islâmico, proliferação de armas, o Iraque, "eixo do mal" e conflito israelense-palestino, a América Latina é irrelevante e, por isso, prescindível.
Os do norte não perderam tempo em integrar-se ao espaço econômico norte-americano. Os do sul dividiram-se diante da perspectiva de acordos de livre comércio com os Estados Unidos e, um a um, a começar pelo Pacífico -Chile, Peru, Colômbia, amanhã quiçá Equador-, sucumbiram à poderosa atração do maior mercado do mundo.
Como se isso não bastasse, a ação de Chávez acabou de rachar o continente. O impasse na ONU é fruto de um acúmulo de provocações: as intervenções belicosas em eleições alheias, a quimera de suposto projeto bolivariano excludente dos EUA, a diplomacia de hostilidade sistemática aos interesses americanos nos quatro cantos do globo, a formação de milícia pessoal armada até os dentes e o açulamento de ações radicais na Bolívia e em outros países.
A divisão nunca é passiva ou estática; ela tende a gerar conflitos e os próximos talvez sejam mais destrutivos do que o quase ridículo episódio onusiano. A situação que se criou é perigosa, devendo ser desmontada o quanto antes.
É possível que o reforço dos democratas nos Estados Unidos ajude a promover clima mais flexível e equilibrado na política hemisférica, mas não se pode contar com isso. Na provável carência de papel mais esclarecido de Washington, cabe ao Brasil usar de sua influência de maneira construtiva. Não tem sentido, por exemplo, recear que nossos interesses fiquem ameaçados com as ações inspiradas pelo Grupo Andino, em cooperação com o Chile e o México, para explorar melhor o potencial econômico da parceria com a Ásia dentro da Associação dos Países do Pacífico. O que temos de fazer é ver como podemos nos associar ao projeto.
Caso se viabilize ou não negociação comercial equitativa com os Estados Unidos, o Brasil e o Mercosul precisam, ao mesmo tempo, celebrar com o México, o Chile, o Peru, a Colômbia, acordos que ao menos nos garantam nesses mercados tratamento similar ao dos americanos.
Deve-se salvar o que é possível da integração energética, desde que com garantias jurídicas contra violências como as que acaba de praticar a Bolívia.
Um país é prescindível não só por não ter poder mas quando o tem e não o usa. Como fizemos, ao abdicar da defesa de direitos legítimos na Bolívia ou por receio de ferir suscetibilidades na reunião de Córdoba dominada pela tríade Chávez-Fidel-Kirchner. O Brasil pode ajudar a sarar a ferida da divisão desde que ponha seu poder a serviço do equilíbrio e da moderação.

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