Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 12, 2006

FERREIRA GULLAR A propósito de um pica-pau




Por que há um pássaro que precisa perfurar um tronco para morar ali, isso eu não entendo

A PRIMEIRA vez que vi um pica-pau foi no sítio de um tio meu, na Jordoa, em São Luís. Eu tinha uns 11 anos e entrara no mato para armar um alçapão de pegar passarinho. Foi quando ouvi umas marteladas regulares e persistentes e fui espiar: ali estava o pica-pau que, agarrado ao tronco de uma árvore, bicava-o com empenho. Nunca tinha visto coisa semelhante, já que pássaro costuma pousar no galho das árvores e não agarrar-se, na vertical, paralelo ao tronco. E muito menos ficar ali batendo contra ele, insistentemente, como se pretendesse perfurá-lo. Fiquei observando-o e rindo.
Que passarinho engraçado! Como é que agüenta bater o bico assim, com tanta força contra o tronco da árvore? E por que faz isso? Será maluco?
Essas eram perguntas de menino que tinha da vida e da natureza uma compreensão desinformada. O pica-pau podia perfeitamente estar mesmo tentando perfurar o tronco da árvore, já que é ali, dentro do tronco, que faz seu ninho; poderia também estar apenas catando larvas sob a casca daquele tronco, que bicava com tanta persistência.
Agora, por que existe um pássaro como esse, que tem necessidade de perfurar um tronco daqueles para morar dentro dele, isso eu não entendo. Razão há de ter ele para agir assim, porque tudo na natureza tem uma razão, ainda que nos pareça absurda. E por falar em razão, o leitor a esta altura se perguntará por que estou eu aqui a resmungar a propósito de um pica-pau? Eis aí outro fato que, aparentemente sem propósito, alguma razão há de ter.
E tem: a notícia, que me fez rir, outro dia, a respeito do tema pica-pau, mais precisamente, da atribuição do prêmio IgNobel de ciência a um biólogo que estudou a anatomia do crânio do pica-pau para descobrir por que a ave não sofre de enxaqueca apesar de bater a cabeça (ou o bico, dá no mesmo) em troncos de árvore cerca de 12 mil vezes por dia.
Constatei, confortado, que não era eu o único a estranhar aquilo. É, sem dúvida, um mistério que o faça, a não ser pelo fato de que, se o faz, é porque sabe que pode, tem cabeça para isso, pois, como diz o ditado: "passarinho que come pedra sabe o c... que tem". Se esse ditado vale para uma coisa, deve valer, com mais razão, para a outra. E, com mais razão ainda, o sabemos nós, e, por isso mesmo, não comemos pedra.
De minha parte, pelo menos, jamais ficaria a bater com a cabeça num tronco 12 mil vezes por dia, aliás, nem 12 vezes apenas, ou melhor, nem mesmo uma vez sequer, porque, se alguma coisa tenho de realmente fraco é a cabeça, e sensível por demais. Não sei se foi de levar tanto cascudo quando criança, não de meus pais nem de meus irmãos, mas dos moleques mais velhos com os quais me metia a jogar porrinha. Ou talvez a causa tenha sido outra, porque, se bem me lembro, bem antes disso, já era sujeito a tonturas. Na verdade, fiquei de miolo mole desde o dia em que saltei do bonde andando, em frente à igreja dos Remédios, embora logo adiante ficasse o ponto final da linha Praça João Lisboa-Gonçalves Dias, que era o outro nome da mesma praça. Em vez de esperar o bonde parar, resolvi dar uma de bacana, pulando de costas -como vi fazer o Raimundinho-, e me dei mal, isto é, dei com a cabeça no chão.
Desde aquele dia, fiquei fraco dos miolos, no bom sentido, claro, não conseguindo nem brincar de roda com os colegas de escola durante o recreio, porque minha cabeça começava a rodar e tinha que segurar em alguém para não cair. Isso me incapacitou para o futebol, esporte predileto de meu pai, que foi "center-forward" da seleção maranhense e cujo exemplo desejava seguir. Mas como, se não podia bater com a cabeça na bola e muito menos no peito de um adversário, à la Zidane?
Aliás, quando vi Zidane derrubar Materazzi com uma testada, a primeira coisa de que me lembrei foi do pica-pau. Não sei a que conclusão chegaria o biólogo se estudasse a cabeça do Zidane. Materazzi, ele derrubou, mas duvido que fosse capaz, como o pica-pau, de dar 12 mil testadas por jogo. E se o fosse, melhor seria contratá-lo, não para jogar futebol, mas para servir de touro nas corridas da Espanha.
Às vezes, me pergunto se aquela queda do bonde não decidiu o meu destino, impedindo-me de me tornar, quem sabe, um Zidane. Meu consolo é que sei de muita gente, de cabeça saudável como o pica-pau, que se meteu a jogar futebol e se revelou um perna-de-pau. E você já deve estar estranhando este diabo de crônica, sem pé nem cabeça. Por isso, acho melhor parar por aqui, antes que decidam atribuir-me o prêmio IgNobel de literatura.

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