Findo o rito eleitoral, chegamos à legitimação do vencedor e — no sistema liberal no qual (gostando ou não) vivemos — do vencido, que legitimou e sustentou o triunfo do ganhador.
A notória dificuldade brasileira de competir tem impedido enxergar melhor vitórias (e derrotas) como as duas faces de uma mesma moeda dos regimes abertos e igualitários. No esporte, assistimos, consternados, ao triunfo servir de pretexto para violências contra os perdedores dentro da antiga crença de que seria “natural” conjugar a derrota com a perda da honra. Daí a tentativa da humilhação sem precedentes, dentro e fora do “campo”, pois aos vitoriosos caberiam todos os louros e glórias, ao passo que os derrotados ficariam com os vexames do aviltamento.
A idéia da disputa institucionalizada, estruturada por normas afixadas em comum acordo, é uma experiência moderna. Antigamente a disputa era equacionada a uma ousadia rebelde ou a um ato impensável: a um satânico gesto revolucionário. Não existia rodízio de poder e o seu exercício era legitimado pela força dos deuses. Até anteontem a derrota, vista como sinal de aprovação das forças sobrenaturais, transformava nobres em exilados, ex-governantes em traidores da pátria e adversários políticos em inimigos do povo. O exato oposto acontecia nas vitórias que davam direito ao aparelhamento do Estado (“agora é a nossa vez”, dizíamos), ao despotismo e, com ele, ao fuzilamento do adversário representado tão-somente como um inimigo sem honra e humanidade.
Um longo e trágico caminho fez com que se tentasse regrar a guerra, esse modo mais louco de resolver conflitos. Certamente por paradoxal pudor chamaram essas regras de “convenções” e elas tentam substituir os velhos costumes abençoados pelo ódio do coração. Assinadas em territórios neutros e marcadas pela ambigüidade dos que criavam uma terceira margem do rio, essas convenções eram o sintoma mais claro da consciência de um poder que pôs em sincronia não só a destruição total do inimigo, mas a possibilidade concreta de um confronto final sem vencedores ou vencidos.
A imposição de uma totalidade a ser preservada, seja ela o planeta ou a pátria, resultou numa tentativa ideal de separação entre os disputantes e as normas. Essa divisão que obriga a dizer “não somos nós, é a lei...” tem seu berço no fundo religioso da modernidade ocidental e no nascimento do mercado, quando se descobriu um mecanismo auto-regulador cuja eficiência seria relativamente independente da vontade dos atores.
Daí para a política foi apenas um passo.
Um passo, contudo, decisivo quando vencedores e vencidos em disputas eleitorais não se destroem, mas abrem mão de seu potencial de autonomia rebelde, degradavelmente dissonante, para formar um elo dinâmico, mas positivo e certamente contraditório, entre o “governo” dos vencedores e a “oposição” dos vencidos.
O par, todavia, tendo um papel decisivo para o bem-estar e a prosperidade coletiva, num rodízio permanente que tipifica o mais alto plano da ação política no liberalismo e obriga a um constante olhar regulador para as regras da disputa. Aqui, nada é natural, divino ou determinado pelas leis de uma história transcendental.
Tudo está em nossas mãos: em nossa boa-fé e senso de honestidade e responsabilidade.
No contexto pós-eleitoral brasileiro, o que vemos é uma interpenetração desses valores por parte dos vencedores, cujo triunfalismo transparece em fantasias de vingança contra a imprensa e a oposição; e dos vencidos, cuja consciência de culpa pode levar a uma trágica perda do papel do derrotado num regime democrático. Nele, reitero, o vitorioso não esmaga o adversário, pois ambos são elementos constitutivos da estrutura de uma dominação (e não de um poder) fundada na liberdade e na igualdade.
Mas o avanço é indiscutível. O novo governo Lula, apesar da retórica, manteve a agenda do governo de FHC com a vantagem de não ter uma oposição petista. O lulo-petismo, agora com o PMDB, fará guinadas em direção ao realismo político reacionário do familismo fantasiado de “governabilidade” e de entendimento nacional. Impossível desejar um fracasso do Plano Real, das privatizações e do fim da inflação. Impraticável também — a menos que se pense novamente num plano B ou num golpe — não desejar uma discussão sobre as regras do jogo num momento em que Lula exerce um mandato sem reeleição e tem elos estruturais com um partido com um enorme passivo moral. Ou seja, tudo o que foi feito pelos tucanos transforma-se de “herança maldita” em gloriosa realidade.
Finalmente chegamos pela primeira vez na nossa modernidade à brasileira aos grandes denominadores comuns que formam a base dos tais ciclos virtuosos. Um patrimônio louvável, sem o qual não se faz uma nação moderna. Esse é o alicerce que promoverá a substituição da aliança entre patrimonialismo estatal e populismo pela política fundada na liberdade e na igualdade. Para tanto, porém, deve-se estar consciente do papel dos vitoriosos e dos derrotados num regime democrático que, a despeito de nossas cabeças leninistas e familísticas, morre sem eles.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2006
(6085)
-
▼
novembro
(455)
- Imprensa, silêncio das oposições e Niemöller
- Demétrio Magnoli Policiais do passado
- Poderes sem pudor fiscal
- Caso de polícia, não de ONG
- A razão de ser da Radiobrás
- A raposa e o porco-espinho
- Celso Ming - No crédito, o juro não cai
- Dora Kramer - Por honra da firma
- Míriam Leitão - Erradicar o mal
- Eliane Cantanhede - Narrativa própria e apropriada
- Procurador-geral não vê uma ligação de Lula com me...
- Boa gestão na velha Radiobrás VINICIUS MOTA
- gora é Tarso Genro quem ataca a imprensa
- OPOSIÇÃO AJUDOU A FAZER A PIZZA
- BRASIL VARONIL Dora Kramer
- ALEXANDRE SCHWARTSMAN Selic a 10% não é inflacioná...
- FERNANDO RODRIGUES Publicidade estatal
- O imperativo das usinas nucleares Rubens Vaz da C...
- Celso Ming - Dia de Copom
- Dora Kramer - Corrida de fundo
- Miriam Leitão Forno de pizza
- O nó de marinheiro do Brasil Roberto DaMatta
- Vamos ter saudades de Gushiken?José Nêumanne
- Bandeirantes-Gamecorp: a "democratização" da mídia...
- AUGUSTO NUNES Três socos na sensatez
- O retorno dos marajás
- Fernando Rodrigues - A necessidade do homem
- Eliane Cantanhede - "Piloto automático"
- Míriam Leitão - Ano morno
- Lula toma as rédeas no PT
- Rendição - e o realismo
- Celso Ming - Um conceito e seus disfarces
- Dora Kramer - Com a faca e o queijo
- A OPOSIÇÃO E A GOVERNABILIDADE
- Celso Ming - Beleza de plantação!
- Dora Kramer - Cerca Lourenço
- PF quer ajuda da CPI dos Sanguessugas para esclare...
- PLÍNIO FRAGA Sorry, periferia
- FERNANDO RODRIGUES Repetição da farsa
- Tentação autoritária FERNANDO DE BARROS E SILVA
- Berzoniev não quer nem saber: diz que volta a pres...
- "Celso não morreu porque era do PT, mas porque a q...
- FOLHA Entrevista Tasso Jereissati
- Conta não fecha e irrita técnicos da Fazenda
- 'Exemplo de cooperativismo' dirigido por Lorenzetti
- Ministério tem 12 servidores para fiscalizar 4 mil...
- Agroenergia: novo paradigma agrícola - Roberto Rod...
- AUGUSTO NUNES Sete Dias
- JOÃO UBALDO RIBEIRO O estouro da boiada num boteco...
- Miriam Leitão Descontrole no ar
- ELIANE CANTANHÊDE O real complô das elites
- CLÓVIS ROSSI Férias, as últimas?
- Ainda Celso Daniel
- O rap da empulhação
- CELSO MING - Operação destravamento
- Dora Kramer O baronato faz acerto na CPI
- Aécio precisa fazer contas - Mailson da Nóbrega
- REINALDO AZEVEDO
- REINALDO AZEVEDO
- GESNER OLIVEIRA Mitos sobre concorrência e bancos
- FERNANDO RODRIGUES A coalizão e a economia
- CLÓVIS ROSSI O difícil, mas necessário
- Miriam Leitão Andar no trampolim
- Carta ao leitor
- Diogo Mainardi A imprensa lubrificada
- MILLÔR
- Ponto de vista: Lya Luft
- André Petry Os Michéis Têmeres
- Roberto Pompeu de Toledo Agruras dos inventores
- O Banqueiro do Sertão, de Jorge Caldeira
- O Crocodilo: crítica violenta a Berlusconi
- Quantas árvores pagam sua dívida com a natureza
- O envenenamento como arma contra os inimigos do go...
- Líbano Assassinato de ministro empurra o país pa...
- A fusão das Lojas Americanas com o Submarino
- Hidrogênio: não polui, mas é muito caro
- Novos bafômetros travam o carro do motorista bêbado
- Os minicarros já somam 35% do mercado no Japão
- Casamento: as chances da mulher são cada vez menores
- Os cinco nós da aviação brasileira
- Como Lula está cooptando a oposição
- As memórias de Hélio Bicudo
- Aloprados do PT combinam defesa e se fazem de vítimas
- O deputado mais votado do PT é preso por crime fin...
- Casca de banana para Lula
- VEJA Entrevista: David Rockefeller
- Tristes trópicos
- O deboche se repete
- Arquivamento suspeito
- "Entreatos" é Lula interrompido
- Eliane Cantanhede - Admirável mundo lulista
- Clóvis Rossi - A normalidade da anomalia
- Míriam Leitão - Temporada 51
- Celso Ming - Reforço na Eletrobrás
- Dora Kramer - Os sete mandamentos
- Cuidado! Há um petista de olho em você
- ELIANE CANTANHÊDE Nem oito nem 80
- CLÓVIS ROSSI Agora, o "voto" dos ricos
- Alô, governador!
- Fala sério!- CARLOS ALBERTO SARDENBERG
-
▼
novembro
(455)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA