Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 08, 2006

ROBERTO DAMATTA - De vitórias e derrotas

Findo o rito eleitoral, chegamos à legitimação do vencedor e — no sistema liberal no qual (gostando ou não) vivemos — do vencido, que legitimou e sustentou o triunfo do ganhador.

A notória dificuldade brasileira de competir tem impedido enxergar melhor vitórias (e derrotas) como as duas faces de uma mesma moeda dos regimes abertos e igualitários. No esporte, assistimos, consternados, ao triunfo servir de pretexto para violências contra os perdedores dentro da antiga crença de que seria “natural” conjugar a derrota com a perda da honra. Daí a tentativa da humilhação sem precedentes, dentro e fora do “campo”, pois aos vitoriosos caberiam todos os louros e glórias, ao passo que os derrotados ficariam com os vexames do aviltamento.

A idéia da disputa institucionalizada, estruturada por normas afixadas em comum acordo, é uma experiência moderna. Antigamente a disputa era equacionada a uma ousadia rebelde ou a um ato impensável: a um satânico gesto revolucionário. Não existia rodízio de poder e o seu exercício era legitimado pela força dos deuses. Até anteontem a derrota, vista como sinal de aprovação das forças sobrenaturais, transformava nobres em exilados, ex-governantes em traidores da pátria e adversários políticos em inimigos do povo. O exato oposto acontecia nas vitórias que davam direito ao aparelhamento do Estado (“agora é a nossa vez”, dizíamos), ao despotismo e, com ele, ao fuzilamento do adversário representado tão-somente como um inimigo sem honra e humanidade.

Um longo e trágico caminho fez com que se tentasse regrar a guerra, esse modo mais louco de resolver conflitos. Certamente por paradoxal pudor chamaram essas regras de “convenções” e elas tentam substituir os velhos costumes abençoados pelo ódio do coração. Assinadas em territórios neutros e marcadas pela ambigüidade dos que criavam uma terceira margem do rio, essas convenções eram o sintoma mais claro da consciência de um poder que pôs em sincronia não só a destruição total do inimigo, mas a possibilidade concreta de um confronto final sem vencedores ou vencidos.

A imposição de uma totalidade a ser preservada, seja ela o planeta ou a pátria, resultou numa tentativa ideal de separação entre os disputantes e as normas. Essa divisão que obriga a dizer “não somos nós, é a lei...” tem seu berço no fundo religioso da modernidade ocidental e no nascimento do mercado, quando se descobriu um mecanismo auto-regulador cuja eficiência seria relativamente independente da vontade dos atores.

Daí para a política foi apenas um passo.

Um passo, contudo, decisivo quando vencedores e vencidos em disputas eleitorais não se destroem, mas abrem mão de seu potencial de autonomia rebelde, degradavelmente dissonante, para formar um elo dinâmico, mas positivo e certamente contraditório, entre o “governo” dos vencedores e a “oposição” dos vencidos.

O par, todavia, tendo um papel decisivo para o bem-estar e a prosperidade coletiva, num rodízio permanente que tipifica o mais alto plano da ação política no liberalismo e obriga a um constante olhar regulador para as regras da disputa. Aqui, nada é natural, divino ou determinado pelas leis de uma história transcendental.

Tudo está em nossas mãos: em nossa boa-fé e senso de honestidade e responsabilidade.

No contexto pós-eleitoral brasileiro, o que vemos é uma interpenetração desses valores por parte dos vencedores, cujo triunfalismo transparece em fantasias de vingança contra a imprensa e a oposição; e dos vencidos, cuja consciência de culpa pode levar a uma trágica perda do papel do derrotado num regime democrático. Nele, reitero, o vitorioso não esmaga o adversário, pois ambos são elementos constitutivos da estrutura de uma dominação (e não de um poder) fundada na liberdade e na igualdade.

Mas o avanço é indiscutível. O novo governo Lula, apesar da retórica, manteve a agenda do governo de FHC com a vantagem de não ter uma oposição petista. O lulo-petismo, agora com o PMDB, fará guinadas em direção ao realismo político reacionário do familismo fantasiado de “governabilidade” e de entendimento nacional. Impossível desejar um fracasso do Plano Real, das privatizações e do fim da inflação. Impraticável também — a menos que se pense novamente num plano B ou num golpe — não desejar uma discussão sobre as regras do jogo num momento em que Lula exerce um mandato sem reeleição e tem elos estruturais com um partido com um enorme passivo moral. Ou seja, tudo o que foi feito pelos tucanos transforma-se de “herança maldita” em gloriosa realidade.

Finalmente chegamos pela primeira vez na nossa modernidade à brasileira aos grandes denominadores comuns que formam a base dos tais ciclos virtuosos. Um patrimônio louvável, sem o qual não se faz uma nação moderna. Esse é o alicerce que promoverá a substituição da aliança entre patrimonialismo estatal e populismo pela política fundada na liberdade e na igualdade. Para tanto, porém, deve-se estar consciente do papel dos vitoriosos e dos derrotados num regime democrático que, a despeito de nossas cabeças leninistas e familísticas, morre sem eles.

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