Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 05, 2006

Reforma política

3 - De volta à fidelidade partidária, ao financiamento público e ao voto em lista. Afastemos as tentações!

Se vai haver ou não reforma política, é o que vamos ver. Debatida, ao menos, ela vai ser. Acho difícil que não se institua, dada a crise que se estabeleceu no Congresso nestes últimos dois anos, a fidelidade partidária ao menos. O princípio me parece bom. O eleito fica impedido de mudar de partido ao menos na vigência do mandato. Já hoje há um prazo mínimo de filiação para que o sujeito possa ser candidato. E se o político quiser mudar de partido? Que mude. Mas terá de devolver o mandato se tiver um.

A fidelidade partidária não implica, necessariamente, a fidelidade de voto. A lei teria de estabelecer que o mandato pertence ao partido. Por quê? Haverá casos em que uma legenda vai querer fechar questão sobre uma determinada votação. E se o parlamentar não obedecer à orientação? Teria de ser punido com a expulsão, o que implicaria perda do mandato.

O que quero dizer com isso? A fidelidade partidária sem a fidelidade de voto é irrelevante. Ela mais desconstituiria os partidos do que o contrário. Esse tem sido o segredo do PMDB desde a redemocratização. Nunca se sabe o que pensa a legenda. Na verdade, a federação peemedebista pensa uma coisa diferente em cada lugar.

Financiamento público
Trata-se de um vistoso engodo. A intenção é meritória. O raciocínio é o seguinte: os candidatos são obrigados a recorrer ao capital privado para custear as campanhas. Ora, quem paga tem a preferência. Uma vez eleito, o político se tornaria uma espécie de despachante de quem arcou com a despesa. A melhor saída, então, seria prever no Orçamento o que alguns chamam o “custo da democracia”.

O financiamento público me parece um daqueles casos clássicos que inspiraram H.L. Mencken a formular uma frase célebre, segundo a qual todo problema complexo tem sempre uma solução simples. E errada. Não há nenhuma razão necessária para que deixe de haver doação irregular aos políticos – e, nesse caso, quero crer, com mais desassombro ainda. Porque não haverá mais a figura definida do arrecadador do partido, do caixa de campanha. A relação com o financiador passará a ser pessoal.

Cada candidato, se quiser, pode fazer seus próprios negócios. Quem diz que democracia custa caro tem razão. Que deputados e senadores acabem atuando, às vezes, como lobistas também é fato. Mas, acho eu, teremos de conviver com isso, lutando para ter uma Justiça Eleitoral mais célere e mais dura. Nesse casos, como em qualquer outro crime, a solução está no fim da impunidade. Nenhuma leia é boa ou má quando não é cumprida.

Há, ainda, outro aspecto: peguemos o caso da CUT, uma entidade sindical que deveria ser apartidária. Ela é? A ajuda da central ao PT seria considerada uma “doação irregular”? Duvido. De resto, escrevam aí: os eleitores não querem dar mais dinheiro aos políticos. O pensamento dominante, à parte as exceções de sempre, é que eles já roubam demais e não precisam de mais dinheiro. Quem sair por aí defendendo o financiamento público vai queimar a língua. Ou o bico...

Sistemas
O Brasil tem hoje convivendo o sistema proporcional para eleições no Legislativo (exceção feita ao Senado) e o sistema majoritário (para cargos do Executivo e senadores). No caso do primeiro, divide-se o total de votos válidos pelo número de cadeiras, chega-se ao quociente eleitoral – cada vaga em disputa corresponde a quantos votos? – e se faz a distribuição entre os partidos. Por exemplo: o partido A terá direito a 40. Os eleitos serão os 40 mais votados da legenda.

No sistema majoritário, elege-se quem tem mais voto. É assim com os senadores, sem quaisquer restrições. Presidente da República e governadores precisam obter em primeiro turno 50% dos votos válidos mais um, ou os dois primeiros colocados disputam o segundo turno. A regra também vale para prefeitos de cidades com mais de 200 mil eleitores.

No caso da Câmara, a principal mudança jamais será feita. Há um limite para a representação dos Estados: 70 deputados federais. Se cada indivíduo, no Brasil, valesse, de fato, um voto, para que um paulista estivesse tão representado como um acreano, em vez de 70, a bancada de São Paulo deveria ter pelo menos 100 deputados. Mas isso não acontecerá. A alegação é que o Estado ficaria forte demais e se romperia o equilíbrio federativo. A argumentação é absurda. A Câmara representa os cidadãos. O tal equilíbrio é garantido pelo Senado, onde cada unidade da federação conta igualmente com três senadores. Um senador do Amapá se elege com um número de votos que não o faria vereador em Campinas...

O que é possível
Bem, então já sabemos o que, embora necessário e justo, não será feito. Vamos ao que é possível. Segundo o sistema proporcional vigente, os partidos são informados a quantas vagas têm direito, e os eleitos são os mais votados. Se Fulano de tal, do Partido A, obtém 800 mil votos para deputado federal, pode estar garantindo, sozinho, para seu partido, três cadeiras, ainda que o segundo e o terceiro colocados de sua legenda tenham se saído muito mal: por hipótese, 5 mil e 10 mil votos. Por outro lado, no Partido B, Zezinho conseguiu 150 mil; Huguinho, 60 mil, e Luizinho, 40 mil. Esse total de 250 mil, no entanto, vai assegurar apenas uma cadeira. Zezinho consegue a vaga. Mas Huguinho e Luizinho dançam, embora com mais votos do que o segundo e o terceiro colocados do Partido A.

Injusto? Aparentemente, sim. Mas não há nada de absurdo. O que conta aí, reparem, é o voto no partido. Assim, é falaciosa essa história de que o sistema proporcional está excessivamente centrado na figura do deputado e prestigia pouco a legenda. É justamente o contrário. Não fosse assim, bastaria pegar a lista dos 70 candidatos a deputado federal mais votados de São Paulo e dar posse. Então para que mudar?

Maior proximidade
Eu entendo que o sentido da mudança é aproximar o Parlamento da população, dando-lhe mais funcionalidade. Por isso, acredito que se deva implementar no Brasil o chamado voto distrital misto. Mas atenção: sou contrário ao sistema de listas. Uma coisa não implica a outra. Explico-me.

No modelo atual, a base territorial de um deputado federal é o Estado todo. O sujeito pode fazer campanha em São Paulo, Dois Córregos, Campinas e Ribeirão Preto. Embora os candidatos costumem ter a sua área de influência, as cidades e regiões onde são fortes, a disputa é livre. Isso encarece bastante as campanhas. Quem conta com mais recursos põe para circular seu nome em mais regiões.

O que é o voto distrital? Separa-se o Estado em regiões, em distritos eleitorais, e os partidos escolhem um nome para representá-lo naquela região. Exemplifico: Santo Amaro, em São Paulo, passaria a ser um distrito eleitoral. PSDB, PT, PFL, PMDB etc teriam o seu nome para disputar a vaga de deputado federal. O mais votado naquele distrito está eleito.

O que isso tem de positivo e de negativo? De muito positivo, há o barateamento da campanha e, sem dúvida, a maior proximidade do candidato com o eleitor. Reparem que a disputa de personaliza. É como se fosse uma eleição majoritária. E o que há de negativo? O deputado eleito pelo voto distrital corre o risco de ser um vereador federal. Sua retórica, seu proselitismo, suas promessas de campanha acabam se amesquinhando. No fundo, o discurso corre o risco de não se distinguir do de um vereador ou do de um deputado estadual.

Pior: perdem-se os chamados “deputados de opinião”. Peguemos dois casos hoje muito conhecidos. Fernando Gabeira (PV-RJ) e Raul Jungmann (PPS-PE) têm-se notabilizado por abraçar, digamos, algumas causas. Um tem votos em todo o Estado do Rio; outro, em todo Pernambuco. Nenhum dos dois tem uma vocação distrital.

Distrital misto
Por isso, acredito que a melhor saída é o chamado voto distrital misto. Um parte da Câmara – e das Assembléias – pode ser composta pela representação dos distritos, mas outra seria definida pelo voto proporcional, como é hoje. Assim, os chamados deputados ligados a causas universalistas – saúde, educação, tributos – podem também compor a Câmara. A distritalização absoluta das votações empobreceria ainda mais o Congresso. Estou convicto disso.

Mas atenção: sem essa história de voto em lista!!! Que os eleitos continuem a ser os mais votados. Costuma-se atrelar ao sistema distrital misto uma facilidade, a saber: o eleitor é chamado a votar na representação distrital e depois se pede a ele um outro voto: de legenda. Cada partido entrega à Justiça eleitoral uma lista de nomes. Faz-se a distribuição proporcional de cadeiras segundo os partidos mais votados, e os eleitos são os primeiros da lista.

A intenção pode até ser boa. Digamos que Kant vivesse entre nós. É provável que Clodovil fosse eleito pelo sistema distrital ou proporcional, mas Kant não. Assim, a gente incluiria o filósofo na lista, e ele se tornaria deputado pelo voto na legenda. De novo, é uma resposta fácil e errada para um problema difícil. Colheremos justamente o efeito contrário: as burocracias partidárias, sem rosto, obterão um mandato – e a respectiva imunidade parlamentar. Garanto que uma parcela mínima dos brasileiros conheciam, antes do escândalo do mensalão, gente como Silvio Pereira e Delúbio Soares. No sistema de listas, seriam deputados. Duvido que um Marco Aurélio Garcia, esse que não gosta da imprensa, se elegesse pelo sistema proporcional. Mas quem duvida que pudesse integrar a lista de notáveis do PT, chegando ao Parlamento sem voto? O voto distrital misto não precisa, necessariamente, acatar o sistema de listas.

Oposições
Espero que as oposições não sucumbam à tentação de instituir o financiamento público – malvisto pela população – e o sistema de lista. As duas escolhas enfraqueceriam o Congresso e fortaleceriam os sistemas paralelos de pressão, os tais movimento sociais, ONGs etc. Aumentaria enormemente o rancor da população contra o Parlamento. E ele se tornaria algo ainda mais distante do eleitor. E urge que se faça o contrário. E tem mais: é claro que os partidos que aparelham movimentos sociais só teriam a ganhar com o voto em lista.
Por Reinaldo Azevedo

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