Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 05, 2006

FERNANDO HENRIQUE Diálogo democrático



Os votos da maioria dão ao governo a legitimidade do mandato, não o monopólio do interesse nacional

Terminadas as eleições, todos gabaram o que é mesmo de gabar: os quase cem milhões de eleitores que votaram, o sucesso da apuração eletrônica, o aspecto festivo do dia das eleições, a legitimidade dos resultados.

jogo da democracia continua, o que é muito bom. Nele o eleitor escolhe o papel que cada partido e cada líder cumprirá.

Aos vencedores caberá jogar com as pedras brancas do xadrez, dando início à partida. Quais as propostas efetivas para governar o Brasil? É sobre essas que os vencidos terão de se pronunciar.

Antes de as propostas serem apresentadas, qualquer encenação de diálogo será adesismo. Não há por que o governo cobrar das oposições disposição incondicional para aceitar acordos, convergências, "concertaciones", nem motivo para afirmar que quem critica torce contra o país. Não cabem os apelos à unanimidade e à adesão imediata. Os vencidos não têm a obrigação moral, em nome da governabilidade, de evitar contraposição ao governo. Isso não quer dizer que a oposição deva votar sistematicamente contra o governo.

Reeleito, o presidente Lula disse que a reforma política será um dos primeiros itens da agenda do segundo mandato. Muito bem, a reforma política é mesmo necessária. Mas qual? O ministro de assuntos institucionais arrolou três de seus itens: a fidelidade partidária, o voto por listas fechadas e o financiamento público das campanhas eleitorais. A fidelidade partidária é consensual (será preciso saber, no entanto, como será definida pela lei) e o financiamento público, embora não seja consensual, não implica posição de princípio. Já a lista fechada de candidatos terá forte oposição do PSDB e de outros setores exatamente porque ela pode representar uma ameaça ainda maior à democracia, sob pretexto de fortalecê-la.

O sistema atual (proporcional com lista aberta) tem inconvenientes conhecidos. Cada partido pode apresentar uma Arte de Cláudio Duarte lista de candidatos correspondente a uma vez e meia o número de cadeiras que cada estado tem na Câmara de Deputados. No caso de São Paulo, são 105 candidatos, pois o estado dispõe de 70 cadeiras. A cláusula de barreira limitou o número de partidos, possivelmente, a dez. Assim, em tese, nas próximas eleições haverá 1.050 candidatos.

O sistema proporcional com lista aberta estimula a competição entre candidatos do mesmo partido (mais interessados em chegar na frente do companheiro do que em somar votos para o partido) e torna as campanhas muito caras, pois o terreno da disputa é imenso (no caso de São Paulo, todo o estado e seus 28 milhões de votantes). Pior, o sistema dificulta em muito a vinculação entre o representante e os representados: aquele não sabe a quem representa nesse universo imenso de eleitores e estes logo esquecem o nome do representante escolhido entre mais de mil nomes. Nessa situação, frente a quem o deputado se torna responsável? Como lhe cobrar desempenho? É aí que entram os agentes intermediários: prefeituras, sindicatos, empresas, igrejas, clubes etc.

Formam-se teias paralelas de lealdades que ajudam o deputado a eleger-se e a reelegerse, sem que o eleitor seja, em momento algum, o personagem principal.

Os apoios mais relevantes — retribuídos por meio de "emendas parlamentares" — se estabelecem com total desconhecimento da massa de eleitores.

Daí deriva, em parte, a corrupção, assim como o conseqüente descrédito da "classe política" perante a população.

O sistema eleitoral sugerido pelo ministro das Relações Institucionais tem outros, mas não menos graves, inconvenientes.

Os candidatos seriam apresentados ao eleitorado em uma lista fechada, cada um ocupando uma posição preordenada por decisão das direções ou instâncias partidárias. O eleitor votaria na lista, e não num candidato individualmente. Seriam eleitos tantos deputados quantos fossem os votos obtidos pelo partido, como no sistema atual, mas a eleição de cada um dependeria de sua posição na lista: um partido que elegesse dez deputados levaria para a Câmara os dez primeiros nomes de sua lista.

O vezo antidemocrático desse sistema salta aos olhos.

Perde o eleitor, impedido de escolher o seu candidato, e ganham as direções partidárias. O deputado se afasta ainda mais do eleitor e torna-se praticamente um refém das burocracias partidárias. Seria essa uma boa maneira de melhorar a qualidade da nossa representação? Como esquecer a série de transgressões que as direções de diversos partidos praticaram recentemente? Por que retirar poder do eleitor, quando ele reúne condições de exercer seus direitos sem a coerção de caciques políticos? A uma eventual proposta de adoção da lista fechada, o PSDB deverá contrapor a tese do voto distrital. Cada partido apresentaria apenas um candidato por distrito. No caso de São Paulo, mais uma vez o nosso exemplo, o distrito seria composto de cerca de 400 mil eleitores (28 milhões divididos por 70 vagas). A disputa ocorreria entre um número pequeno de candidatos (dez no máximo, ou seja, um número dez vezes menor que o atual) num universo eleitoral reduzido (70 vezes menor que o atual). É fácil perceber por que o sistema distrital, além de terminar com a disputa entre candidatos do mesmo partido, favorecendo assim a coesão partidária, fortaleceria os vínculos entre eleitores e eleitos e reduziria o custo das campanhas eleitorais e, portanto, uma das fontes da corr upção.

O sistema distrital puro não é a única opção.

No distrital misto, uma parte das cadeiras da Câmara dos Deputados poderia ser disputada pelo sistema de listas. Nesse caso, ainda assim, o melhor é que o eleitor tivesse o direito de alterar a ordem de colocação dos candidatos. A vantagem do sistema misto é preservar o espaço dos chamados "candidatos de opinião pública", que disputam e obtêm votos de forma mais dispersa.

A desvantagem fica por conta de sua maior complexidade .

É com base em propostas concretas que as oposições poderão conversar com o governo. Propostas, e não meras intenções abstratas, como a de querer crescer a 5% ao ano. Quem não gostaria que o crescimento fosse até maior? O problema é como obtê-lo.

Os caminhos são variáveis. É preciso discuti-los objetivamente, sem pedir de antemão que as oposições adiram a simples promessas que podem se revelar mirabolantes.

Os votos da maioria dão ao governo a legitimidade do mandato, mas não o monopólio do interesse nacional e popular.

É preciso que o governo se convença disso. A linguagem e a prática até aqui adotadas não têm sido as da democracia, mas sim do populismo com pendor autoritário.

Nessa conversa o PSDB não pode entrar.

Arquivo do blog