O Globo |
1/11/2006 |
Que Polícia Federal "republicana" é esta, que se arvora ao direito de constranger jornalistas que publicaram reportagens contrárias ao governo federal ou à própria instituição? Que governo é esse que mal saído das urnas com uma consagradora vitória eleitoral precisa dar uma demonstração de força contra a liberdade de imprensa? Que partido político é esse que incentiva seus militantes a agredir jornalistas na porta da residência oficial do presidente da República, sendo que alguns desses militantes usavam crachás de funcionários do próprio governo? Que sinais repetidos são esses que acabam de ser dados pelo mesmo governo que já tentou controlar os meios de comunicação através de um conselho estatal? Pois tudo isto está acontecendo não em uma longínqua ditadura, mas no Brasil, uma das maiores democracias do mundo, que acaba de sair de uma eleição presidencial das mais limpas e ordeiras, com mais de cem milhões de votos sendo apurados em poucas horas. O presidente reeleito recebeu da oposição um tratamento surpreendentemente cordial, a ponto de em poucas horas ter se dissipado a idéia de que um "terceiro turno" continuaria com a tentativa de impugnar a candidatura de Lula, em que pese divergências e a existência de processos diversos contra o governo e o próprio presidente da República. Ao que tudo indica, porém, o governo entendeu essa oposição dura mas democrática como uma capitulação diante de sua vitória esmagadora, e partiu para a retaliação contra os meios de comunicação, acusados por diversos líderes governistas de terem tentado influenciar a opinião pública contra a reeleição de Lula. É flagrante a semelhança com o ato de "vingança" do então presidente Fernando Collor que, dias depois de ter sido eleito, autorizou, na tarde de sexta-feira, 23 de março de 1990, fiscais da Receita e agentes da Polícia Federal a invadirem o prédio do jornal "Folha de S. Paulo", que considerava ter sido seu adversário durante a campanha presidencial. A pretexto de conferir se o jornal estava cobrando faturas publicitárias no recém-criado cruzeiro, houve uma demonstração de truculência oficial claramente política. São vários os sinais de que a ação da Polícia Federal contra os jornalistas de "Veja" não foi ato isolado, mas sim parte de uma ação governamental para pressionar os meios de comunicação que consideram oposicionistas. O deputado Ciro Gomes, a mais ferina língua de aluguel do governo, defendeu recentemente que "é preciso incentivar dramaticamente os meios de comunicação alternativos, fortalecer cooperativas de jornalistas, financiar e, nisso, conceder canais de televisão", a pretexto de incentivar uma "imprensa plural". Essa solução oficial para incentivar uma "mídia independente" com dinheiro público, além de risível pelo própria incoerência, tem precedentes históricos ruins: foi na CPI do jornal Última Hora, criado a partir de empréstimos generosos do Banco do Brasil para defender o governo de Getúlio Vargas, que surgiu a expressão "mar de lama". O presidente do turno do PT, Marco Aurélio Garcia, ao fingir criticar a violência contra os jornalistas, cobrou da imprensa uma "auto-reflexão" sobre o seu comportamento durante as eleições. E, assim como o Presidente Lula sugeriu que grevistas liberassem as catracas do metrô para os usuários, Garcia classificou de "sadio" um suposto movimento de cancelamento de assinaturas de jornais e revistas. O ministro Tarso Genro, um adepto fervoroso da teoria da conspiração, já acusara os meios de comunicação, durante a campanha, de favorecerem o adversário do presidente Lula, como se os fatos noticiados - a prisão dos petistas com uma mala cheia de dinheiro e a exibição da montanha de dinheiro ilegal que serviria para comprar um dossiê contra tucanos - não tivessem sido produzidos pelos próprios petistas. Esse movimento de pressão contra jornalistas é a continuação de um processo autoritário que se revelou ainda no início desse primeiro mandato de Lula, e se expressava não apenas nas alianças políticas literalmente compradas, como depois ficou provado com as denúncias sobre o mensalão, mas em tentativas de controlar a imprensa e as produções culturais, com a criação de conselhos estatais. A Agência Nacional de Cinema e Audiovisual daria poderes para o governo interferir na programação da televisão e direcionar o financiamento de filmes, e toda a produção cultural, para temas que estivessem em sintonia com as metas sociais do governo. O Conselho Nacional de Jornalismo teria a finalidade de controlar o exercício da profissão e poderes para punir, até mesmo com a cassação do registro profissional, os jornalistas que infringissem normas de conduta que seriam definidas pelo próprio Conselho. Nunca é demais lembrar que Tarso Genro defende, em seu livro "A esquerda em progresso", a democracia direta à la Hugo Chávez, com a "exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação", e o controle dos meios de comunicação através de "conselhos de Estado". Segundo ele, esses conselhos garantiriam "a liberdade de informação e o livre trânsito de opiniões na sociedade democrática", pois "a democracia é incompatível com o controle da opinião pública por uma mídia unilateral". Pois mal sai das urnas com a consagração "do andar de baixo", o governo Lula se sente em condições de retomar a tentativa de controle dos meios de comunicação e a difusão cultural no país. Ao mesmo tempo em que ironiza os "formadores de opinião" da grande imprensa, o governo quer financiar "mídias alternativas" para tentar, através de seus jornalistas chapa-branca, influenciar a opinião pública com dinheiro público. |
Entrevista:O Estado inteligente
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