o estado de s paulo
"Nós estava errado." Assim mesmo, "we was wrong" no original inglês, foi a chamada de uma matéria da revista The Economist de algum tempo atrás. A matéria e seu título refletiam três coisas. O velho sentido de humor britânico, tanto mais simpático quanto mais voltado para si próprio. O reconhecimento explícito, e uma boa explicação do porquê, dos "erros" de avaliação anteriormente cometidos. E mais importante, ao misturar singular e plural em brincadeira, a revista deixava claro a seus leitores que assumia coletivamente as previsões que haviam sido feitas: "Nós erramos e não fulano errou." Não sei por que este exemplo menor da infindável controvérsia sobre o tema de responsabilidades individuais e coletivas me vem à mente neste sombrio setembro de 2005, em que o governo Lula completará suas Mil e Uma Noites.
Talvez porque a atitude de alguns participantes e coadjuvantes das espantosas histórias que vêm sendo dadas a público nos últimos meses me lembrem a observação de um velho romano: "Ninguém acha que delinqüiu mais do que é permitido" (Juvenal, citado por Montaigne em seus Ensaios). Mas se esta postura, tal como criticada pelo estóico moralista, é velha como a metade do tempo, há exemplos recentes de outras formas de enfrentar penosas realidades.
Na semana passada, por exemplo, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, afirmou publicamente que assumia responsabilidade pessoal pelos desastres e ilícitos identificados em devastador relatório produzido por Paul Volcker sobre o programa Petróleo por Alimentos, administrado pela ONU. Disse Annan: "O relatório critica-me pessoalmente e eu aceito as críticas. As conclusões são profundamente embaraçosas para todos nós; a comissão de inquérito rasgou as cortinas e dirigiu uma dura luz sobre os mais recônditos escaninhos de nossa organização." Volcker foi curto e direto: "Nosso mandato era o de verificar se houve incompetência na administração do programa, bem como procurar evidências de corrupção. Infelizmente, ambos foram encontrados."
Os mais céticos dirão: não há nada de novo sob o sol. Afinal, a observação de Juvenal tem cerca de 1.900 anos. Para ficar no período mais recente, o excelente livro de H. James sobre História da Europa (1914-2000) contém uma curta, mas rica seção sobre casos recentes de corrupção nos principais países europeus, que vale a pena ler. Na Europa, como nos EUA, como em qualquer país do mundo, existem tentações a que muitos não resistem (afinal, como diz o nosso moralista maior, o ser humano não falha). Mas o que diferencia os países é o grau de (in)tolerância de seus cidadãos para com ilícitos desta natureza, a efetividade com que suas instituições são capazes de assegurar a não-impunidade e a clareza com que se expressam a respeito, não apenas nos discursos como nas práticas (públicas e privadas), os representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Estamos num destes momentos-chave no Brasil, em termos de definição de responsabilidades, individuais e coletivas, pelas lamentáveis histórias que estão vindo a lume nos últimos meses. Há que confiar na importância do aprendizado coletivo envolvido no processo e nas suas conseqüências, em termos do aumento da maturidade política e institucional do País, forçadas por uma sociedade que se moderniza. Como vem acontecendo na economia, hoje, paradoxalmente, a principal base de sustentação do governo Lula.
Na minha modesta opinião, contudo, o discurso presidencial, hoje - à la James Carville -, principalmente voltado para a economia (e procurando evitar os temas que estão, no momento, no centro da crise política em que vivem seu partido e seu governo), ainda não demonstrou reconhecer, ao menos de público, as razões do desempenho econômico do País ao longo das primeiras Mil e Uma Noites de seu governo.
Resumindo ao extremo algo que venho dizendo há tempos, são três as razões principais deste desempenho. Primeiro, um contexto internacional extraordinariamente favorável, que propicia ao Brasil, assim como a vários outros países, um forte vento a favor. Segundo, a postura do ministro Palocci e sua equipe, de compromisso firme com uma política econômica coerente, apesar de todo o explícito fogo amigo. Terceiro, mas não menos importante, pelos efeitos das mudanças estruturais e avanços institucionais alcançados na vigência não só desta como de administrações anteriores, como reconheceu o ministro Palocci em sua exemplar entrevista coletiva de agosto.
Olhar para o restante de 2005, para 2006 - e adiante - significa avaliar como podem evoluir esses três conjuntos de fatores. Sobre o primeiro o Brasil não tem controle, embora a natureza das respostas do País a eventos externos sempre será importante. Mas a melhor resposta está nos outros dois conjuntos de fatores. A consolidação destes processos é a melhor forma de alcançar o objetivo em torno do qual há total consenso: assegurar um crescimento mais acelerado e de forma sustentada por um longo tempo à frente. Entretanto, como notou o economista Joaquim Elói Cirne de Toledo, em artigo recente, "... é preciso apontar o cerne da restrição ao crescimento acelerado: o baixo nível histórico do investimento na economia brasileira, inclusive em capital humano no sentido amplo, incluindo não apenas educação formal, mas conhecimento técnico e operacional, saneamento, habitação e saúde. Os investimentos que não fizemos no passado (distante ou próximo) parecem impor uma triste e pesada obrigação ao governo e à sociedade".
Estas questões ligadas à redução das barreiras ao investimento (privado e público) têm, em parte, que ver com a política macroeconômica (que, no mundo de hoje, é apenas um meio para que outros objetivos possam ser alcançados), porém muito mais com as agendas microeconômica e regulatória e com infra-estruturas institucionais e a efetividade de seu funcionamento. E são estas questões que, espero, possam não estar ausentes das discussões ao longo dos próximos 12 meses, ao fim dos quais o governo Lula terá completado Mil e Uma Noites e Um Ano. Haja Sherazade.
Entrevista:O Estado inteligente
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