Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 03, 2007

O potencial do etanol brasileiro

O nosso é real.
O de Bush é blablablá

As promessas brasileiras do combustível limpo
são concretas, mas estamos a anos-luz de nos
tornarmos a Arábia Saudita do etanol


Denise Dweck e Thomaz Favaro


A visita do presidente americano George W. Bush ao Brasil, nesta semana, ocorre em meio à expectativa de que seu encontro com o presidente Lula marque o início de uma aliança entre os dois países – os maiores produtores mundiais de etanol – para incentivar o uso do álcool combustível. Interessa aos dois governos promover o produto como substituto da gasolina com o duplo objetivo de diminuir a dependência do petróleo e reduzir a emissão de gases que contribuem para o aquecimento global. Faz tempo que Lula propagandeia as vantagens do etanol em praticamente todas as viagens internacionais que faz. Já Bush abraçou a causa no início do ano, quando pediu aos americanos um corte de 20% no consumo de gasolina na próxima década e sua substituição por etanol e outros biocombustíveis. O tema é tão importante para os americanos que o tour de Bush pela América Latina é chamado de "diplomacia do etanol".

Alguns entusiastas vislumbram o início de um novo ciclo de esplendor nas exportações brasileiras – quem sabe um repeteco dos ciclos da borracha e do café. O deslumbramento do governo brasileiro ajuda a alimentar essa tese. "Vamos ser a maior potência energética do século XXI", disse Lula na inauguração de uma usina de biodiesel no Ceará, no mês passado. Houve até quem imaginasse que o encontro entre Bush e Lula daria origem a uma Opep do etanol, a exemplo do cartel de produtores de petróleo formado nos anos 70. Há base factual para tais especulações: saem das destilarias brasileiras e americanas 72% de todo o álcool combustível do planeta. Em teoria, a produção seria suficiente para um quase monopólio brasileiro e americano. A realidade é um pouco diferente. A possibilidade de o Brasil ser o líder mundial na produção de energia limpa é real, mas estamos a anos-luz de uma Opep do álcool combustível.

Delfim Martins/Pulsar
Colheita mecanizada de cana-de-açúcar em Serrana, no interior de São Paulo: uso de máquinas já evita o recurso da queimada em metade dos canaviais brasileiros

Em primeiro lugar, porque não existem excedentes significativos para exportar. Quase toda a produção é para consumo interno. Segundo, para uma expansão da produção, seria necessário encontrar compradores para o etanol. Atualmente, o Brasil é o único país a utilizar o etanol em larga escala – 20% da frota nacional roda com álcool. Nos Estados Unidos, os carros com motor bicombustível representam apenas 2,5% da frota automotiva e, dos 180.000 postos de abastecimento do país, só 1.000 vendem álcool (o E85, uma mistura de 85% de etanol e 15% de gasolina). Outros grandes consumidores, como o Japão e os países europeus, apenas misturam pequena quantidade de álcool ao combustível fóssil. A França, o quinto maior produtor mundial de etanol, tira seu combustível da beterraba – o que seria economicamente inviável não fossem os fortes subsídios.

Seja como for, o Brasil tem um bom produto para oferecer a esses países, e, se eles quiserem usar combustível limpo, a indústria brasileira é a única em condições de ser uma fornecedora em escala global. "Nosso plano é transformar o etanol em uma commodity energética internacional, como o petróleo, e para isso precisamos incentivar mais países a se tornar produtores e criar um padrão técnico para o produto", diz Antônio Simões, chefe do departamento de energia do Itamaraty. Mesmo incentivando os competidores, o Brasil ganharia com o aumento do mercado externo e com a venda do conhecimento e da tecnologia de etanol, conquistados em três décadas de pesquisas na área. A lógica por trás dessa estratégia é que poucos países estariam dispostos a adotar o uso do etanol em larga escala se tivessem de depender do fornecimento de uns poucos exportadores, como ocorre com o petróleo. A ironia é que, apesar de ser um produto agrícola e energia renovável, não é tarefa simples reproduzir o sucesso do etanol brasileiro em muitos países.

As diferenças existentes entre o Brasil e os Estados Unidos são um exemplo dessa dificuldade. O produto brasileiro é feito com cana-de-açúcar, de longe a matéria-prima mais eficiente e mais ecologicamente correta para essa finalidade. Os americanos extraem álcool do milho, de produtividade menor e custo maior. O segundo fator é a existência no Brasil de terras cultiváveis suficientes para expandir a produção de etanol em proporção inimaginável para os Estados Unidos. O terceiro é que o mercado de etanol brasileiro, ao contrário de seu equivalente americano, não depende de subsídios do governo.

A alta competitividade do álcool brasileiro explica por que os produtores americanos de milho têm chamado o Brasil de "Arábia Saudita do etanol" – expressão usada para exagerar o perigo de substituir a dependência do petróleo saudita pelo combustível feito no Brasil. Em termos de potencial de produção, a comparação faz sentido. Dona de 22% das reservas conhecidas e maior produtor mundial de petróleo, a Arábia Saudita responde por 13% do abastecimento mundial. Estima-se que, se todos os automóveis do planeta passassem a usar apenas etanol como combustível, o Brasil seria capaz de atender a 25% da demanda global, sem precisar substituir o cultivo de alimentos por cana-de-açúcar. Sem poderem ampliar a área plantada, os Estados Unidos teriam de dedicar toda a sua produção de milho para substituir 16% do combustível fóssil por álcool. Sem a importação de etanol, o plano de Bush para os biocombustíveis não passará de blablablá.

Divulgação
O PRIMEIRO FLEX
O carro bicombustível parece a última palavra em tecnologia automobilística – pois é a mais antiga. Henry Ford acreditava no etanol como o combustível do futuro. O Ford T de 1908, o modelo que popularizou o uso do automóvel, funcionava tanto com etanol como com gasolina. Um subproduto desprezado do petróleo, a gasolina acabou prevalecendo devido ao preço, que era, então, irrisório. Mais tarde, para aumentar a eficiência, os motores modernos foram regulados para o uso exclusivo de um determinado combustível.

O plano do Brasil de se tornar um grande exportador da energia renovável pode evaporar mais rápido do que álcool derramado. A maior barreira decorre de dúvidas sobre se o etanol pode ser a solução definitiva para o aquecimento global. O álcool diminui em 80% a liberação de gás carbônico na atmosfera, em comparação com a gasolina. No caso do etanol brasileiro, há a vantagem de praticamente 100% do gás carbônico emitido pela queima do combustível verde ser absorvido pelas novas plantações de cana-de-açúcar. O mesmo não ocorre com o milho, o trigo ou a beterraba, outras fontes de produção de etanol. Por outro lado, a redução de emissões pode ser anulada pelo impacto ambiental causado pela necessidade de ocupar vastas áreas de terra cultiváveis para plantar a matéria-prima do álcool. "A maioria dos países e regiões citados como futuras potências do etanol enfrentaria sérios problemas ambientais caso ampliasse demais as plantações com esse fim", disse a VEJA o americano Lester Brown, presidente do Earth Policy Institute, com sede em Washington. "A China, o terceiro maior produtor de etanol, e a Índia, o segundo maior produtor de cana-de-açúcar, por exemplo, sofrem com a escassez de água", diz Brown. Boa parte da África e a Austrália enfrentam a mesma limitação. No Brasil, o regime de chuvas permite o cultivo sem irrigação de cana-de-açúcar.

No ano passado, a China suspendeu a construção de destilarias porque a produção de etanol estava afetando o abastecimento de milho. A pressão do etanol sobre a produção de alimentos já é sentida nos Estados Unidos. No ano passado, 20% do milho colhido no país foi transformado em álcool – o triplo de 2001. Resultado: o preço do grão, essencial para a ração animal, dobrou. O efeito foi sentido até no México, que utiliza milho para preparar um alimento típico, a tortilla. O preço da tortilla triplicou nos últimos meses, provocando protestos na capital mexicana. Tudo isso é conseqüência de uma demanda de etanol que representa apenas 4% do consumo de gasolina dos Estados Unidos. Abastecer o mercado americano seria a realização de um sonho para os usineiros brasileiros, não fosse o álcool sujeito às arcaicas políticas de subsídios e proteção de mercado, como acontece, em geral, com as commodities agrícolas nos países ricos.

Allen Brisson-Smith/The New York Times/Redux
Posto com etanol, nos EUA: distribuição precária

Nos Estados Unidos, os produtores de milho recebem ajuda governamental para pagar a conta do biocombustível (a produtividade do milho como matéria-prima do etanol é a metade da alcançada pela cana-de-açúcar). Os produtores têm isenção tributária de 51 centavos de dólar por galão. O lobby agrícola americano promete resistir a qualquer tentativa de eliminar a barreira alfandegária imposta ao álcool brasileiro, taxado em 46% do valor do produto, segundo cálculo da consultoria em comércio internacional Icone, de São Paulo. "A tarifa alta não inviabiliza a exportação do álcool brasileiro para os Estados Unidos, mas nos faz perder competitividade", diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura. A possibilidade de o Brasil vir a sustentar a potencial demanda dos carros americanos por etanol teria outros problemas. Em uma situação hipotética em que o Brasil expandisse sua produção para atender a toda a meta de Bush de consumo de etanol, a área plantada de cana-de-açúcar teria de aumentar de 3 milhões para 20 milhões de hectares. Isso representaria quase um terço de todas as terras brasileiras cultivadas, proporção equivalente ao que ocupa a soja hoje. Ou seja, o Brasil estaria, mais uma vez, apostando no modelo monocultor e de exportação de commodities como meio para atingir o desenvolvimento econômico. A armadilha dessa aposta é evidente nos países que hoje sustentam sua economia na exportação do petróleo: tirando a riqueza petrolífera que brota fácil do solo, países como a Venezuela e a Arábia Saudita praticamente não têm outra fonte de renda. Enfim, é engano acreditar que a excelência brasileira na produção de etanol duraria muito tempo. "Como toda commodity, quando há mercado, outros países acabam desenvolvendo rapidamente a tecnologia necessária para produzi-la", diz o engenheiro Rafael Schechtman, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, do Rio de Janeiro. Para iniciar uma plantação de cana e instalar uma destilaria bastam cinco anos.

"EU VI A MOLÉCULA!"

Drawlio Joca
O professor Expedito Parente, com a sua descoberta: trabalho com Boeing e Nasa


No fim de 1977, o engenheiro químico Expedito Parente, então com 37 anos, estava em seu sítio a 100 quilômetros ao sul de Fortaleza. Sob a sombra de um ingazeiro, bebericava uma cachaça quando teve uma idéia: extrair óleo de sementes, misturá-lo com álcool e, após algumas reações químicas, obter um combustível – que viria a se chamar biodiesel. "Eu vi a molécula!", relembra ele, bem-humorado. Expedito Parente era professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em apenas uma semana de trabalho no laboratório, sua idéia já fazia funcionar um motor com óleo extraído da semente do algodão. Acabara de inventar um combustível vegetal, não poluente – justamente quando o mundo tentava se adaptar aos efeitos devastadores do choque do petróleo. "As reações químicas que permitiam obter um combustível vegetal já estavam teoricamente descritas na literatura havia cinqüenta anos. O que fiz foi aplicá-las", explica o professor, que registrou a patente do seu invento três anos depois – mas só agora, trinta anos mais tarde, começa a ver sua idéia se popularizar como uma solução para os problemas energéticos e ambientais do planeta. "Demorou para deslanchar, mas eu sou paciente e não desisti do meu sonho", diz ele, no escritório da sua empresa, a Tecbio, instalada no centro de Fortaleza.

Nos últimos trinta anos, o engenheiro químico viu altos e baixos de sua invenção. Logo que patenteou seu invento, o governo se interessou pelo novo combustível, que então se chamava "pró-diesel". Em pleno regime militar, as autoridades propuseram ao engenheiro químico que desenvolvesse sigilosamente um bioquerosene para abastecer os aviões da Força Aérea Brasileira. Nos primeiros quatro anos da década de 80, o inventor dedicou-se ao projeto militar. Em 24 de outubro de 1984, conseguiu fazer com que um Bandeirante voasse de São José dos Campos para Brasília com bioquerosene. No aeroporto, chegou a ser recebido pelo então presidente João Figueiredo, num sinal do interesse do governo pelo projeto. Mas, depois disso, surpreendentemente, o governo abandonou a idéia. Sem apoio oficial, Expedito Parente não teve muito que fazer, além de palestras, e sua invenção não chegou a ter viabilidade comercial. Como prevê a lei, em 1990 a patente do biodiesel expirou e a tecnologia tornou-se de domínio público. Em 1994, o professor aposentou-se e, sete anos depois, montou a Tecbio, que concebe e constrói usinas de biodiesel.

Agora, o governo voltou a se interessar pela invenção do professor. Ele passou a ser uma espécie de consultor informal para a área de biocombustíveis. Conquistou a confiança da ministra Dilma Rousseff, que, antes de ocupar a Casa Civil, era ministra das Minas e Energia. Em 2006, aproximou-se do presidente Lula, que freqüentemente o cita em seus discursos. No fim do ano passado, teve uma audiência de duas horas com Lula no Palácio do Planalto. O assunto, claro, era biodiesel. A última troca de gentileza entre os dois foi pública: ocorreu durante a inauguração de uma usina de biodiesel em Crateús, no interior do Ceará, em janeiro. No evento, Lula convidou o professor para falar sobre o combustível.

Ricardo Stuckert/PR
Arquivo pessoal
Parente (de barba), com o vice-presidente Aureliano Chaves em 1980, apresenta o biodiesel. Quase trinta anos depois, Lula inaugura usina (à esq.)

Aos 66 anos, casado pela segunda vez, pai de quatro filhos, um deles engenheiro químico, Expedito Parente está finalmente ganhando dinheiro com sua invenção. No ano passado, a Tecbio, que tem sessenta funcionários, dos quais quarenta são engenheiros e economistas, faturou 18 milhões de reais. Tem clientes na Espanha, no Vietnã e nos Estados Unidos e já possui representantes em outros países da América do Sul, do Caribe e da África. Entre seus clientes está a Boeing, a maior fabricante de aviões comerciais do mundo. E o que Parente faz para a empresa americana? Desenvolve o bioquerosene, exatamente como tentou fazer para a FAB há trinta anos. O acordo é sigiloso e supervisionado pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. Sabe-se que os testes com o combustível já estão bastante avançados. Não será surpresa se, em algum momento, os aviões comerciais começarem a operar com combustível vegetal inventado pelo brasileiro. Ponto para os americanos. "Hoje ganho algum dinheiro, que não tenho tempo para gastar", diz o professor, em tom de brincadeira. Expedito Parente está feliz. Afinal, recebe por sua invenção, embora não diga quanto, e ainda tem o prazer de vê-la na vitrine das campanhas pela preservação do meio ambiente e como alternativa energética para um futuro próximo. Ele conta: "Em 2001, fiz um passeio com meu filho pelo interior da Alemanha e lá vi uma bomba de biodiesel num posto. Fiquei alegre de ver minha invenção difundida, mas frustrado porque aquilo não estava ocorrendo no Brasil. Agora, as coisas estão mudando. Tenho paciência. Sou um homem realizado".

Ricardo Brito, de Fortaleza


Montagem sobre fotos Suhaib Salem-AFP/Ricardo Stuckert-PR, Edu Lyra-Getty Images e Charles Dharapak/AP

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