FOLHA DE S PAULO
Tomo emprestado de Manolo Florentino o belo título do livro "O Arcaísmo como Projeto" para designar como merece a proposta de reduzir as tarifas de importação de manufaturados e desse modo acelerar o que já vem ocorrendo: a desindustrialização precoce do Brasil.
Prematura ou precoce é a desindustrialização que começa antes de se completar o processo de transformação econômica acarretado pela indústria. É a decadência sem nunca haver atingido o apogeu. Nas sociedades avançadas ou pós-industriais, as escandinavas por exemplo, chega um momento em que a indústria passa a dar contribuição menor, em termos relativos, ao PIB e à geração de empregos. Não é que a indústria morra; ela apenas se transforma, abandona o osso, a carne magra e de segunda -os produtos intensivos em mão-de-obra ou recursos naturais- para concentrar-se no filé -a tecnologia sofisticada, a mecânica de precisão, os bens intangíveis como patentes e fórmulas para licenciamento a outros.
A Suíça deixou, há muito tempo, de fabricar tecidos para produzir teares de fio de ar; a Finlândia especializou-se nos celulares; Taiwan e os EUA preservam a engenharia, a tecnologia, mas terceirizam a chineses do continente, a centro-americanos, a manufatura do produto final.
Quando é saudável e resultado de amadurecimento natural, essa transição aparece no momento em que a renda per capita atinge valores entre US$ 11 mil e US$ 12 mil. É patológica se o gatilho da desindustrialização dispara a níveis de menos de metade ou um terço dessas quantias conforme está acontecendo em boa parte da América Latina e da África. Nesses casos, trata-se de doença pois a indústria perde o fôlego antes de ter conseguido imprimir à economia a velocidade para decolar. Como diz a expressão brasileira, morre na praia.
Ao abortar a gestação antes do fim do ciclo, a desindustrialização deixa a economia sem condições de produzir a renda necessária para que os serviços empreguem os que ficaram na rua quando as fábricas fecharam. Daí o aparecimento do desemprego estrutural a níveis de 9% ou 10% da população ativa. Um exemplo é o Cone Sul, onde a indústria respondia, em 1970, por 20,8% do total do emprego e baixou, em 2000, a 11,8% -nove pontos a menos!
Embora menos do que no caso dramático da Argentina, o declínio da indústria em termos relativos, não absolutos, já é tendência clara no Brasil, ao longo das últimas décadas. O bom desempenho do setor no ano passado e neste atenua mas não inverte a tendência. Áreas inteiras da indústria desapareceram -a de componentes eletrônicos, a de fármacos e química fina. Outras -autopeças, telecomunicações- passaram a controle estrangeiro e viraram, em grande parte, importadoras e distribuidoras de produtos da matriz, os engenheiros e pesquisadores reciclados em gerentes de vendas.
A redução das tarifas estenderá a esses setores combalidos o estrago que os chineses já vêm causando nos de manufaturas baratas. Alega-se que a redução provocará "choque de competitividade". Isso poderia ser verdade se fossem semelhantes no Brasil as variáveis que mais impacto produzem na capacidade de competir. Ora, continuamos, há mais de um ano, como campeões mundiais de juros reais exorbitantes; nossa carga tributária é mais que o dobro do que a de nossos competidores; o real está supervalorizado; a infra-estrutura brasileira de estradas e portos está caindo aos pedaços. Faz sentido, nessas condições, enfraquecer ainda mais os que suportam tal peso?
Não preciso dizer que a notícia sobre a posição do Ministério da Fazenda arranca o tapete debaixo dos pés de nossos negociadores na OMC, abala a aliança do Brasil com a Argentina e a Índia, co-autores conosco de proposta diferente e é um serviço extraordinário a nossos adversários, americanos e europeus, que não perdem ocasião de fazer o contrário do que propugnam os bizonhos ideólogos daqui: protegem sua agricultura como acabam de fazer os EUA com as taxas sobre o suco de laranja.
Não surpreende, assim, que, segundo a Funcex, perdemos para os chineses desde 1996 quase 30% de participação no mercado dos EUA, sobretudo de manufaturas. Só falta agora entregar-lhes o nosso mercado. Estaremos realizando afinal o sonho arcaico do marechal Dutra em mensagem ao Congresso na qual afirmava que o Brasil era e seria sempre um país de vocação essencialmente agrícola!
Entrevista:O Estado inteligente
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