Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 18, 2005

Só livro a cara dessas duas JOÃO UBALDO RIBEIRO

o globo

S ic transit gloria , assim passa a glória deste mundo e hoje ninguém mais fala em Pittigrilli. Aliás, excetuada a turma dos sessentinha em diante, no mínimo cinqüentinha e tantos, ninguém faz idéia de quem foi Pittigrilli. Era um escritor meio peralta, geralmente publicado aqui em volumes com sobrecapas coloridas e sugestivas (no bom ou no mau sentido, conforme você considere Aquilo bom ou mau) que muita gente tinha de ler escondido, mas que hoje seria água-com-açúcar e considerado conservador e bobinho por qualquer pré-adolescente que leia, ou seja, aí uns 0,7% deles embora, no que depender do incentivo presidencial, devamos bater na marca do 0,5% no próximo ano. Na casa de meu pai, Pittigrilli não chegava a ser proibido, mas, para cada livro dele que me pegava lendo, o velho tacava até o Fausto em cima de mim (ao qual, aliás, até hoje tenho horror; perdão, Alemanha), ou me mandava decorar versos da Divina Comédia em italiano, que ele só entendia lendo e eu nem lendo nem ouvindo, o velho não era mole.

Pittigrilli era frasista e não me esqueço de uma afirmação que os pittigrillófilos veneravam e repetiam com ares cínicos às colegas de faculdade: "As únicas mulheres sérias são minha mãe e a mãe do leitor." Ha-ha. Está certo, é uma besteira que só tinha alguma graça na época, mas hoje me serve de arrimo para o que pretendo dizer. Vou aproveitá-la para dizer que as únicas pessoas honestas, honestas mesmo, no Brasil, são minha mãe e a mãe do leitor. Assim, não tenho que ficar fazendo ressalvas o tempo todo, nem repetindo "alegadamente" ou "supostamente". Aliás, aproveito o ensejo para dizer que tentei eliminar o maior número de entrelinhas possível e que qualquer alusão negativa porventura percebida deve ser acompanhada de um ou de ambos os advérbios acima, fornecidos gratuitamente com a compra deste jornal — não podem ser vendidos separadamente.

Na minha opinião, existe no Brasil, em permanente funcionamento, não fechando nem para o almoço, uma Central Geral de Maracutaia. Não é possível que não exista. E, com toda a certeza, é uma das organizações mais perfeitas já constituídas, uma contribuição inestimável do nosso país ao patrimônio da raça humana. Nada de novo é implantado sem que surja no mesmo instante, às vezes sem intervalo visível, imediatamente mesmo, um esquema bem montado para fraudar o que lá seja que tenha sido criado. E (alegadamente, alegadamente — sei que fiz a ressalva antes, mas manda a prudência repeti-la), em muitos casos, até parece que o governo inventa as coisas para que a oportunidade de fraude apareça e a economia seja estimulada, já que por outras vias talvez fique mais difícil, além de contrariar a natureza do nosso povo, ou coisa assim. Todo mundo esqueceu, mas eu não esqueci o que aconteceu faz um par de anos, quando o governo (o do outro, não o deste, é que às vezes fica difícil distinguir; o outro era o que também dizia besteiras, só que em várias línguas, além de se proclamar mulato, enquanto este diz besteiras exclusivamente em português e alisou o cabelo — são diferenças importantes, que não se pode deixar de lado, ao se analisar os dois governos) decretou que todo carro ia ter que levar um tal kit-socorro, que depois se demonstrou não servir para nada. Só havia um fabricante para o tal kit e milhões foram vendidos, meteram o dinheiro no bolso, o governo desistiu do kit e ficou tudo por isso mesmo. Bonito golpe, coisa de craque mesmo.

Exemplo mais recente ocorreu em São Paulo, mas podia ser em qualquer outra cidade do país, porque a CGM é onipresente, não deixa passar nada, nem discrimina ninguém. Segundo me contam aqui, a prefeitura de São Paulo agora fornece caixão e enterro gratuitos para os doadores de órgãos, certamente os mais pobres. Basta que a família do morto prove que ele doou pelo menos um órgão, para receber o benefício. Mas claro, é isso mesmo, você adivinhou, ser brasileiro é meramente uma questão de prática. Surgiram indivíduos ou organizações que, mediante uma módica contraprestação pecuniária, fornecem documentação falsa, "provando" que o defunto doou órgãos, para que o caixão e o enterro sejam pagos com dinheiro público. Como somos um povo muito inteligente, ágil e adaptável, já deve haver profissionais empenhados até mesmo na expansão do benefício a outras cidades, preferivelmente a todo o país. Vereadores farão discursos inflamados sobre o funeral participativo, os prefeitos sancionarão as leis e fatura-cá, fatura-lá, como não podia deixar de ser, realidade é realidade. E, como somos também um povo criativo, que contorna a crise com habilidade (não somos corruptos, atenção; corruptos são os políticos e demais extraterrestres que nos exploram), não demora e esse negócio abrirá franquias e assim, como muito justamente alega o governo, a economia continua a crescer disparada, tão em disparada que a gente não vê. O espetáculo do crescimento é tão rápido que não dá nem para acompanhar, é meio como corrida de Fórmula-1.

É isso que salva o país, um povo bom e trabalhador, que sabe transformar as dificuldades em oportunidades. E um povo honesto, apesar de tudo, porque duvido que, se houver livre concorrência que garanta a competição, os preços oferecidos pelo serviço não sejam razoáveis e ao alcance da bolsa de qualquer um. E, claro, a família que recebe o caixão de graça fraudulentamente está apenas usando o jeitinho brasileiro para driblar a crise, até porque os impostos que nós pagamos vão para os ladrões que estão no serviço público e ninguém se esquece de que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, por seu turno razão pela qual todos os políticos ladrões brasileiros têm indulgência plenária, ou quase.

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