o globo
S ic transit gloria , assim passa a glória deste mundo e hoje ninguém mais fala em Pittigrilli. Aliás, excetuada a turma dos sessentinha em diante, no mínimo cinqüentinha e tantos, ninguém faz idéia de quem foi Pittigrilli. Era um escritor meio peralta, geralmente publicado aqui em volumes com sobrecapas coloridas e sugestivas (no bom ou no mau sentido, conforme você considere Aquilo bom ou mau) que muita gente tinha de ler escondido, mas que hoje seria água-com-açúcar e considerado conservador e bobinho por qualquer pré-adolescente que leia, ou seja, aí uns 0,7% deles embora, no que depender do incentivo presidencial, devamos bater na marca do 0,5% no próximo ano. Na casa de meu pai, Pittigrilli não chegava a ser proibido, mas, para cada livro dele que me pegava lendo, o velho tacava até o Fausto em cima de mim (ao qual, aliás, até hoje tenho horror; perdão, Alemanha), ou me mandava decorar versos da Divina Comédia em italiano, que ele só entendia lendo e eu nem lendo nem ouvindo, o velho não era mole.
Pittigrilli era frasista e não me esqueço de uma afirmação que os pittigrillófilos veneravam e repetiam com ares cínicos às colegas de faculdade: "As únicas mulheres sérias são minha mãe e a mãe do leitor." Ha-ha. Está certo, é uma besteira que só tinha alguma graça na época, mas hoje me serve de arrimo para o que pretendo dizer. Vou aproveitá-la para dizer que as únicas pessoas honestas, honestas mesmo, no Brasil, são minha mãe e a mãe do leitor. Assim, não tenho que ficar fazendo ressalvas o tempo todo, nem repetindo "alegadamente" ou "supostamente". Aliás, aproveito o ensejo para dizer que tentei eliminar o maior número de entrelinhas possível e que qualquer alusão negativa porventura percebida deve ser acompanhada de um ou de ambos os advérbios acima, fornecidos gratuitamente com a compra deste jornal — não podem ser vendidos separadamente.
Na minha opinião, existe no Brasil, em permanente funcionamento, não fechando nem para o almoço, uma Central Geral de Maracutaia. Não é possível que não exista. E, com toda a certeza, é uma das organizações mais perfeitas já constituídas, uma contribuição inestimável do nosso país ao patrimônio da raça humana. Nada de novo é implantado sem que surja no mesmo instante, às vezes sem intervalo visível, imediatamente mesmo, um esquema bem montado para fraudar o que lá seja que tenha sido criado. E (alegadamente, alegadamente — sei que fiz a ressalva antes, mas manda a prudência repeti-la), em muitos casos, até parece que o governo inventa as coisas para que a oportunidade de fraude apareça e a economia seja estimulada, já que por outras vias talvez fique mais difícil, além de contrariar a natureza do nosso povo, ou coisa assim. Todo mundo esqueceu, mas eu não esqueci o que aconteceu faz um par de anos, quando o governo (o do outro, não o deste, é que às vezes fica difícil distinguir; o outro era o que também dizia besteiras, só que em várias línguas, além de se proclamar mulato, enquanto este diz besteiras exclusivamente em português e alisou o cabelo — são diferenças importantes, que não se pode deixar de lado, ao se analisar os dois governos) decretou que todo carro ia ter que levar um tal kit-socorro, que depois se demonstrou não servir para nada. Só havia um fabricante para o tal kit e milhões foram vendidos, meteram o dinheiro no bolso, o governo desistiu do kit e ficou tudo por isso mesmo. Bonito golpe, coisa de craque mesmo.
Exemplo mais recente ocorreu em São Paulo, mas podia ser em qualquer outra cidade do país, porque a CGM é onipresente, não deixa passar nada, nem discrimina ninguém. Segundo me contam aqui, a prefeitura de São Paulo agora fornece caixão e enterro gratuitos para os doadores de órgãos, certamente os mais pobres. Basta que a família do morto prove que ele doou pelo menos um órgão, para receber o benefício. Mas claro, é isso mesmo, você adivinhou, ser brasileiro é meramente uma questão de prática. Surgiram indivíduos ou organizações que, mediante uma módica contraprestação pecuniária, fornecem documentação falsa, "provando" que o defunto doou órgãos, para que o caixão e o enterro sejam pagos com dinheiro público. Como somos um povo muito inteligente, ágil e adaptável, já deve haver profissionais empenhados até mesmo na expansão do benefício a outras cidades, preferivelmente a todo o país. Vereadores farão discursos inflamados sobre o funeral participativo, os prefeitos sancionarão as leis e fatura-cá, fatura-lá, como não podia deixar de ser, realidade é realidade. E, como somos também um povo criativo, que contorna a crise com habilidade (não somos corruptos, atenção; corruptos são os políticos e demais extraterrestres que nos exploram), não demora e esse negócio abrirá franquias e assim, como muito justamente alega o governo, a economia continua a crescer disparada, tão em disparada que a gente não vê. O espetáculo do crescimento é tão rápido que não dá nem para acompanhar, é meio como corrida de Fórmula-1.
É isso que salva o país, um povo bom e trabalhador, que sabe transformar as dificuldades em oportunidades. E um povo honesto, apesar de tudo, porque duvido que, se houver livre concorrência que garanta a competição, os preços oferecidos pelo serviço não sejam razoáveis e ao alcance da bolsa de qualquer um. E, claro, a família que recebe o caixão de graça fraudulentamente está apenas usando o jeitinho brasileiro para driblar a crise, até porque os impostos que nós pagamos vão para os ladrões que estão no serviço público e ninguém se esquece de que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, por seu turno razão pela qual todos os políticos ladrões brasileiros têm indulgência plenária, ou quase.
Entrevista:O Estado inteligente
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