ANNA VERONICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA
Não fiquei nada fascinada com a primeira hora do depoimento de José Dirceu, que não conheço, e muito menos conhecia sua voz. Se alguma vez o escutei não me fez impressão. Não liguei a TV com a mente virgem. Há muito tempo ouço falar dele, afinal tem 40 anos de vida pública.
Seu périplo não passou despercebido a nenhum brasileiro. Lembro-me de um garboso líder estudantil, de um combatente falando às massas perseguido, preso, torturado. Foi trocado nas negociações para a soltura do embaixador americano. Banido, viveu no exílio cubano, onde estudou e trabalhou. Retornou antes da anistia para viver clandestino entre Paraná e São Paulo. Uma plástica mudou-lhe a fisionomia e parece ter formado família.
Surpreendeu-me muitíssimo quando disse ser um homem "só" e depois: "Sei me defender sozinho". Confesso, fiquei atônita. Um homem na posição dele, com o passado dele, chegar ao Conselho de Ética classificando-se assim me levou a repensar o que antes imaginava. Um migrante mineiro, estudante solitário em terras paulistas, apegou-se e mergulhou nas instituições de política estudantil como se fora esta sua nova família.
Ele afirma, e nisto acredito plenamente, que o PT é sua paixão. Política tornou-se seu lar, sua família. Dirceu não conhece ternura. Esqueceu. Deixou isso em sua longínqua Santa Rita do Passa Quatro. Em algum momento, perdeu o seu chão. Desligou-se do solo perto do qual se criou.
Por que Dirceu tornou-se o homem que diz, sem saber a importância do que diz: "Eu me defendo sozinho"? Que grande solidão!
Dirceu não mencionou que tivesse qualquer história que não a institucional. Homem de organizações, partidos e instituições não tem passado que não seja de membro, delegado, muitas vezes eleito,outras nomeado, escolhido. Não o vejo como pequeno orientador de roubos, delitos com vistas a seu próprio bolso. Parece que só desejava fortalecer sua família de adoção: a política de início e o PT desde então.
Vejo Zé Dirceu vivendo para criar uma posição no mundo da política. Idealista? Também isso, mas fundamentalmente um escravo de sua família de adoção. Ele não vai renunciar à sua pertinência política. Isso é tudo o que consegue reconhecer como sua parte no mundo. Dirceu é o homem sem pátria (fala muito de PT e pouco de Brasil).
Tenho pena deste homem que veio parcialmente, dividido, para estudar em São Paulo. Seu sotaque encantadoramente caipira denuncia, para alguém bem atento, que um pedaço seu ficou lá e nunca mais foi integrado. Temos em José Dirceu um homem que deixou seu Oliveira e Silva para trás, lá em Passa Quatro.
Dizem que ele é mau, burocrático, autocrático. Pode ser tudo isso, mas não passa de conseqüência de uma migração, pelo que imagino, prematura e não elaborada.
Não chegou inteiro a este grande mundo cosmopolita. Apenas veio de corpo. Sua alma, seu psiquismo, suas emoções paralisaram-se pelo caminho. Dirceu quer manter seu ninho, sua família, seu lar. Luta pelo PT mas não luta pelo homem próximo nem pela pátria. Poderia dizer como se diz à boca pequena, que ele quer poder. Mas poder para quê?
Seguramente para manter a família que inventou. Conseguiu ser eminência parda numa Republica democrática. Parece simplesmente querer proteger o teto que o abriga.
Acredito que possa até não ter processos contra si. Defender-se de perigo é próprio aos desvalidos de ternura e carinho. Quando fala sobre o funcionamento das burocracias, é muito claro, muito convincente. É no mundo frio das organizações burocráticas que ele se sente um peixe n'água.
Conhecer nosso lar é o mínimo para que tenhamos garantido o nosso bem estar. Zé Dirceu não estranha as entranhas institucionais. É seu refúgio.
Parece que nunca percebeu que aqui, distantes de regulamentos, ainda existem corações pulsando.
Não me parece que dizê-lo ambicioso e carreirista o explica. É preciso aceitar que, para ele, a burocracia é sua única segurança. Não o desculpo. Em nome da segurança pessoal já foram feitas tantas desgraças no mundo que prefiro calar! Tenho dito.
Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora)
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