Tive uma educação protestante, fortemente marcada pelo estudo da doutrina cristã, leitura diária da Bíblia e análise dos motivos que levaram à separação da Igreja Católica há cinco séculos. Para os protestantes, não há santos, não há pedidos de intercessão em favor dos mortos e o ritual da morte é um agradecimento a Deus pela vida concedida. A vida de João Paulo II é razão bastante para todos os agradecimentos que o mundo viu nesta semana.
O Papa João Paulo II usou de forma extraordinária os talentos que recebeu. Difícil encontrar alguém na Igreja que o iguale na capacidade de comunicação. Aprendeu línguas; várias. Pode-se imaginar a quantidade de horas que dedicou ao treino dos idiomas. Na era da comunicação, ele entendeu que o domínio de diversos idiomas seria uma ferramenta inestimável em favor do que era a sua missão. E foi. João Paulo II fez mais viagens do que parecia possível. Rompeu a clausura do Vaticano onde se resguardaram outros Papas. Beijou o chão de terras estrangeiras, mostrando que achava preciosa a terra de cada povo. Escolheu percursos difíceis, como o interior calorento do Nordeste brasileiro, em pleno verão, ou o Morro do Vidigal.
Quando parecia derrotado pela velhice e pela doença, continuou passando mensagens sobre as quais refletir. O final da vida também é vida. A decrepitude também é vida. A doença é vida. Foi o que ele disse em gestos e atitudes nos dias finais que viveu. Não me refiro à polêmica conjuntural da eutanásia, mas ao fato de que os líderes, de qualquer natureza, costumam aceitar a divulgação de sua imagem apenas nos bons momentos; se escondem da mídia nos maus momentos. João Paulo II exibiu suas fragilidades de forma desconcertante. Foi pedagógico num mundo que cultua obsessivamente a juventude, a saúde e a beleza, como se, sem esses dons, a vida não valesse a pena.
Por tudo isso, ninguém ficou indiferente à morte dele. A notícia que mais recebeu espaço na imprensa, como foi dito ontem neste jornal. Nem os ateus, nem os protestantes, nem os fiéis de tantas outras religiões puderam ignorar seu exemplo e sua fé.
Mas, agora, a instituição milenar que presidiu terá que encontrar outro líder. O novo Papa terá que ser capaz de se comunicar. Tarefa difícil achar outro tão bom comunicador quanto João Paulo II, mas não há mais caminho de volta ao isolamento. João Paulo II pôs os pés do Papa no mundo; definitivamente.
Ao longo do século XXI, a Igreja Católica será desafiada a mudar alguns de seus dogmas, convicções e práticas; como foi ao longo de sua história. Na Idade Média, atacou quem a colocava diante da proposta de mudança. Tentou sustentar que a Terra era fixa e o centro do universo, mas entendeu mais tarde que os movimentos do planeta não revogavam a Fé. Ela está depositada sobre outros mistérios, mais insondáveis que o movimento dos astros. Os avanços da ciência não podem ser detidos por temores de que o novo entre em conflito com alguma interpretação religiosa. As interpretações mudam com o tempo e o conhecimento. Os humanos estamos apenas começando a entender o mundo das possibilidades expostas à nossa frente.
A Idade Média ofereceu um outro desafio, ainda maior do que a ciência renascentista: um cisma comandado por um monge alemão cujas idéias se espalharam pela Europa como um rastilho de pólvora. Não foi possível evitar a divisão, mas a Reforma a impeliu a fazer novas mudanças e atualizações. A venda das indulgências contra a qual Lutero se rebelou foi abolida e vários princípios fundadores foram revividos e fortalecidos. No século XX, o avanço de idéias sociais foi capturado no aggiornamento comandado por João XXIII.
A Igreja Católica soube mudar ao longo dos séculos — mesmo que o tenha feito lentamente — e terá que mudar de novo no século XXI. Algumas idéias defendidas pelo clero já foram revogadas até pelos mais devotos. Na primeira visita do Papa ao Brasil, a taxa de natalidade brasileira era de 4,35 filhos por mulher. Hoje é de 2,1 filhos. A maioria das mulheres brasileiras continua sendo católica, mas adotou os métodos anticoncepcionais modernos que a Igreja condena por uma visão inteiramente ultrapassada.
Está na hora de um Papa não-europeu. Tomara que o conclave perceba. Mas esta não deveria ser a única mudança daqui para frente. Em algum momento deste século, a Igreja terá que discutir de forma mais aberta a sexualidade, o celibato, a ordenação de mulheres, os novos padrões de comportamento. O que é certo e errado no mundo do comportamento muda com o tempo. Salomão deixou seus provérbios, cantares e salmos na Bíblia, mas, com suas centenas de mulheres, seria um pecador aos olhos de hoje. O “Olho por olho”, do Velho Testamento, foi revogado pelo “Dai a outra face”, do Novo Testamento. Este é o desafio que estará posto diante dos líderes da Igreja nos próximos anos e décadas: mudar, mantendo o essencial, os princípios cristãos que a trazem viva há dois mil anos.
Entrevista:O Estado inteligente
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