A maior conquista da política externa do governo Lula são as excelentes relações com o governo do presidente George W. Bush. Pode parecer irônico, e é mesmo. Nestes 28 meses de governo, gastou-se enorme quantidade tanto de retórica quanto de combustível de avião para propagar a idéia de uma política externa diferente– "independente", "terceiro-mundista", "sul-sul" ou "de esquerda", escolha-se o rótulo que se preferir. De um variado cardápio, que incluía das relações ditas estratégicas com a China à ênfase supostamente preferencial no Mercosul, passando por insistentes turnês africanas, o que se extraía como ponto comum era o desejo de ostentar distância de Washington. Eis que a secretária de Estado Condoleezza Rice nos faz uma visita na semana passada e sua permanência no país, permeada de charme e de elogios ao Brasil, "uma potência regional que caminha para se tornar potência mundial", assinala a volta ao porto seguro das relações com os Estados Unidos, ao cabo de uma laboriosa e fútil viagem da circunavegação da diplomacia lulista ao redor do planeta.
A confusão entre fantasia e realidade, doença que afeta os governos em geral, e manifesta-se com especial virulência no governo Lula, tem na política externa sua área preferencial de atuação. Alguns exemplos:
Fantasia: "Eu tenho a convicção de que o que nós fizemos na América do Sul nestes dois primeiros anos foi um avanço maior do que o que foi conquistado nos últimos quarenta ou cinqüenta anos" (presidente Lula, dia 20 último, perante a Organização Regional Interamericana de Trabalhadores). Realidade: o Mercosul está em destroços e a relação com a Argentina recuou ao nível conturbado da época da construção de Itaipu. Até o ato simples e mecânico de conceder asilo político ao presidente deposto do Equador converteu-se em motivo de discórdia, a Argentina reclamando de o Brasil forçar a mão no afã de exercer influência sobre os vizinhos. As condições para a trombada estão postas. De um lado, um presidente argentino dado a ressentimentos e amuos. De outro, um presidente brasileiro não só sedento de exercer liderança, mas vulnerável ao pecado de alardear liderança. O resultado são infantilidades como o argentino não ir ao funeral do papa porque o brasileiro foi.
Fantasia: "O Itamaraty considera que Seixas Corrêa tem grandes chances de ser escolhido para o cargo" (Correio Braziliense, 28/2/2005). Realidade: a candidatura do embaixador brasileiro Luiz Felipe Seixas Corrêa à diretoria-geral da Organização Mundial do Comércio, lançada para se contrapor à do francês Pascal Lamy e à do uruguaio Pérez del Castillo, foi eliminada logo na primeira rodada de consultas entre os países-membros. Ficou atrás até do que era tido como o maior azarão do páreo, Jaya Krishna Cuttaree, das Ilhas Maurício. As consultas são sigilosas, mas consta que, na América Latina, só o Panamá optou pelo brasileiro. Do episódio, sobrou a evidência de que o Itamaraty se lançou a uma aventura, característica da empolgação que o tem acometido. De quebra, exibiu ao mundo a fratura do Mercosul, que já tinha no uruguaio um candidato nascido em seu seio.
Fantasia: "Nossos países estão consolidando, definitivamente, uma das mais sólidas relações políticas, comerciais, culturais e econômicas que o mundo já conheceu" (presidente Lula ao presidente chinês Hu Jintao, em novembro último). Realidade: a China, ao vetar o ingresso do Japão no quadro permanente do Conselho de Segurança da ONU, virtualmente congelou a reforma do órgão. Por tabela, feriu de morte o acalentado projeto brasileiro de figurar, ele também, no seleto clube dos "permanentes". Não que o enterro do projeto mereça lágrimas. Pertencer ao Conselho de Segurança traz inconvenientes que vão da ciumeira dos vizinhos à contingência de, uma vez lá dentro, ser confrontado a todo momento com os caprichos e imposições da potência americana. Mas é uma cisma do governo Lula. Faz parte de seu show. E foi golpeado justamente pelo "parceiro estratégico" chinês.
O som e a fúria são a característica central da política externa de Lula. De concreto mesmo, temos as relações com os EUA. Em honra delas, vale até uma boa trapalhada, como a protagonizada na semana passada pelo ministro José Dirceu, ao se precipitar em direção à Venezuela na véspera da chegada de Condoleezza. Ao que tudo indica, ele foi tentar arrancar do coronel Hugo Chávez algum tipo de abrandamento de sua postura antiamericana, para oferecê-lo como um mimo à secretária de Estado. Voltou de mãos vazias. O assessor de Lula para política externa, Marco Aurélio Garcia, diria depois que Dirceu foi à Venezuela discutir "assuntos gerais"– como se fosse concebível alguém correr a um avião, ir até outro país e voltar correndo só para discutir "assuntos gerais". O que se queria mesmo era exibir força e oferecer um agrado a Condoleezza. O governo Lula não sabe e até pensa o contrário, mas a relação com os Estados Unidos é a jóia da coroa de sua política externa.
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