Quando o então ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique, Celso Lafer, aceitou retirar os sapatos em uma inspeção de segurança num aeroporto americano, nos momentos tensos que se seguiram aos atentados terroristas de setembro de 2001, o PT oposicionista fez um escândalo, denunciando a "subserviência" do representante brasileiro.
O que fariam hoje, quando o principal ministro político do governo, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, é mandado às pressas à Venezuela para tentar tirar de Hugo Chávez uma boa notícia para dar à secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, que visitava o país?
Mesmo tendo Dirceu retornado sem uma garantia de Chávez de rever o rompimento do acordo militar com os Estados Unidos, o governo brasileiro foi de uma solicitude que poderia ser confundida com subserviência por um crítico mais ácido. Mas que certamente contará pontos no relacionamento com o governo americano.
Esta nossa política externa multifacetada é assim mesmo, capaz de atitudes que podem ser criticadas por excessiva boa vontade com os Estados Unidos, e logo depois tomar outra que cheire a um antiamericanismo infantil. Isso acontece não apenas porque o governo petista é assim mesmo, dependendo do grupo que toma a decisão no momento, vai para um lado ou para o outro. Especialmente no Itamaraty, que agora tem quatro cabeças pensando nossa política externa, e não necessariamente na mesma direção.
Mas as ambigüidades da nossa política externa têm uma razão mais objetiva: nossa liderança regional, exaltada pela secretária de Estado, só será respeitada se não formos identificados como meros "paus mandados" dos Estados Unidos. Por isso, embora na prática tenha sido o que fez, de maneira açodada (Dirceu viajar à Venezuela), o país recusou o pedido de Condoleezza para ser um intermediário formal nas relações de Chávez com os Estados Unidos, preferindo manter a independência que lhe possibilitou criar o "grupo dos amigos da Venezuela".
Os Estados Unidos, depois de muita desconfiança, parece que já entenderam o papel que o Brasil pode desempenhar na região, daí a "descoberta" do canal José Dirceu para atuar em uma região crescentemente esquerdista e com instabilidades políticas evidentes, onde Cuba continua sendo um problema.
O governo brasileiro admite que o relacionamento com os Estados Unidos é um tabu nas esquerdas, mas está convencido de que uma "não política" com os Estados Unidos é insuficiente para o Brasil. Porém, para fortalecer sua posição nas negociações internacionais, o Brasil precisa de um Mercosul forte, e esse hoje é o principal problema nosso, devido à reação argentina à crescente liderança regional brasileira. O presidente Néstor Kirchner já deixou de comparecer a diversas reuniões regionais sem razões fortes, e considera que o Brasil de Lula é muito subserviente aos interesses americanos e aos organismos internacionais.
Kirchner se apresenta como uma esquerda independente e, embora não tenha força política nem econômica para ser uma alternativa à liderança brasileira, tem capacidade de enfraquecer o Mercosul, que volta e meia sofre também o "fogo amigo" brasileiro, como no caso da candidatura frustrada à presidência da OMC, quando o candidato uruguaio já havia se lançado.
O projeto brasileiro para a América do Sul é ambicioso politicamente, e Dirceu defendeu sempre sua integração como uma prioridade da política externa brasileira, uma integração física e de infra-estrutura, mas que tem como objetivo de longo prazo uma moeda única e até mesmo a "integração militar".
Condoleezza disse, na sua passagem por Brasília, que os Estados Unidos estão "ansiosos" por ajudar os países da América do Sul, e citou como um sucesso a ação americana na Colômbia, com o combate ao narcotráfico e a redução dos crimes. Essa é justamente uma das preocupações do governo brasileiro, que quer atuar na região para impedir que os Estados Unidos o façam, com receio de que ocupem a Colômbia e, por extensão, a Amazônia.
Mesmo que às vezes o faça açodadamente, outras com atitudes de esquerdismo infantil, é esse o papel a que o Brasil se dispõe, não em benefício dos Estados Unidos, mas no da região de que é líder reconhecido. E é por isso também que vem negociando o acordo de livre comércio com os Estados Unidos, através do Mercosul, de maneira dura, que superou o ranço ideológico inicial para se ater a questões comerciais concretas.
Teremos que enfrentar barreiras à negociação, as principais sendo a agricultura e a propriedade intelectual. Para o Itamaraty, são barreiras que expressam "de modo emblemático as assimetrias do processo de negociação, e o fosso que separa as prioridades de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento", na definição do embaixador Adhemar Bahadian, negociador do Brasil.
O governo brasileiro considera que o protecionismo agrícola dos países ricos e as tentativas de imposição de novas regras nas relações comerciais, em questões que já estão definidas pela OMC, agravam a fragilidade econômica, política e social na América Latina, e vão de encontro ao desejo do governo americano de fortalecer a democracia no mundo.
Depois que o chanceler Celso Amorim conseguiu, num contorcionismo etimológico, reincluir a Alca na pauta de negociações, desdizendo de maneira elegante o que o presidente Lula havia bravateado, vamos agora para as negociações fortalecidos pelo reconhecimento de nossa liderança regional, mas enfraquecidos no Mercosul pela dissidência da Argentina.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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quinta-feira, abril 28, 2005
Merval Pereira:Sentimentos ambíguos
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