Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 22, 2005

Merval Pereira:Os republicanos

O processo político que resultou na eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara e mais a relação explícita de troca de apoio político por cargos no governo pelos partidos aliados estão fazendo com que um grupo de políticos, especialmente senadores, comece a conversar para tentar buscar fórmulas que façam com que o conceito de República, tão presente na retórica de algumas figuras do governo, mas tão ausente do dia-a-dia de nossa política, prevaleça nas relações entre os poderes e se espalhe pela sociedade.

É um movimento suprapartidário que une, por exemplo, os senadores Cristovam Buarque, do PT, Jefferson Peres, do PDT, e Marco Maciel, do PFL, cada qual com preocupações semelhantes, mas abordando o conceito de República através de análises diversas.

Jefferson Peres dá uma especial atenção à política, idealmente desejando que os políticos republicanos de todos os partidos possam se unir em torno de uma nova legenda para combater os patrimonialistas. O senador Marco Maciel foca sua preocupação nas reformas institucionais que precisam ser feitas, na sua opinião, para equilibrar os poderes e dar mais autonomia a estados e municípios. E o senador Cristovam Buarque centra seu projeto na educação, caminho para que a sociedade brasileira saia do que chama de apartheid social.

Segundo o senador Peres, o receio é que o movimento fique identificado com o governo ou com a oposição, com este ou aquele partido. “Existem republicanos em todos os partidos”, diz. Segundo ele, terminada a dicotomia ideológica no mundo, no Brasil permanece uma dicotomia: republicanos de um lado e patrimonialistas do outro. “Se analisarmos bem, o que o Severino diz cinicamente é o que muitos praticam disfarçadamente”, constata, desolado, o senador do PDT.

O que é preciso, para esse grupo, é reunir aqueles que têm espírito público e cultuam os chamados valores republicanos. “É uma pena que esse Brasil atrasado, o do patrimonialismo, tenha conseguido se impor. Que o processo histórico não tenha levado a uma separação nítida de campo, porque está tudo embaralhado hoje”, lamenta Jefferson Peres, que constata que “o PT teve que se aliar aos patrimonialistas, assim como o fez Fernando Henrique, e ficam tucanos republicanos hostilizando petistas republicanos”.

Segundo ele, “a idéia é irmos conversando para ver se formamos um movimento, para que essas idéias, através do debate público, perpassem todos os partidos. Isso para que, quem sabe, amanhã, de maneira natural, propiciem um reagrupamento e uma diferenciação dos dois campos”.

O senador Marco Maciel centra sua análise na necessidade de reformas institucionais para fortalecer a federação. Ele lembra que a Constituição de 1988 promoveu uma descentralização que, num primeiro momento, permitiu que estados e municípios tivessem uma certa autonomia do governo federal, especialmente na questão orçamentária. Mas que, aos poucos, a centralização foi voltando a prevalecer, até provocar graves desequilíbrios financeiros nos estados e municípios.

Além das reformas institucionais, como a tributária, o senador Marco Maciel também aponta a necessidade de uma ampla reforma abrangendo a legislação eleitoral e política. Um exemplo que dá é a lei de verticalização, que ele considera antifederativa “porque retira a possibilidade de os partidos, nos respectivos estados, decidirem seus rumos, ficando condicionados a uma diretriz nacional. Em uma federação, você tem que deixar que os cidadãos decidam nos estados como organizar suas chapas, como definir suas coligações”.

Já o senador Cristovam Buarque diz que até hoje não completamos a República, continuamos como nas monarquias: “Existe uma classe superior, uma elite, que não se mistura, que não tem o governo como representante de todos”. Ele acha que mesmo o governo do PT “toma as decisões em função da minoria dos privilegiados, em defesa dos corporativizados, dos mais organizados”.

Ele diz que, em grande parte, a violência de hoje no Brasil se deve à falta de um espírito republicano no país. “A relação entre assaltante e assaltado é de habitantes de sociedades separadas, sem solidariedade entre eles”. Cristovam lembra que em países como Argentina, Chile, Uruguai, “você tem uma relação de identidade com o garçom, com o motorista de táxi. No Brasil, há uma arrogância dos ricos, que separa os fregueses de quem os serve”.

O senador do PT diz que o caminho para equilibrar essa relação “é mais político do que econômico”. Segundo ele, o que impediu a republicanização do país foi “a falta de um programa de educação universal equivalente para todos”. Na sua análise, durante uma boa parte de nossa história tivemos boas escolas públicas federais, mas para pouca gente.

“O governo federal repassou para os estados e municípios a educação, ficou de fora da educação das massas, mas manteve sua participação na educação das classes privilegiadas, através das universidades e do desconto do imposto de renda para os filhos da classe média”, ressalta o senador Cristovam Buarque, para quem “a solução está na federalização da educação”.

O movimento republicano que alguns políticos começam a organizar, para tentar fazer frente ao que chamam de patrimonialismo que impera na relação entre o Palácio do Planalto e os partidos da base aliada no Congresso, poderia, segundo o senador Jefferson Peres, do PDT, chegar ao ponto de “oferecer apoio ao governo para aprovar projetos importantes, para ajudar a fazer desaparecer essa coisa terrível de os governantes do Brasil de hoje, em nome da governabilidade, terem que aceitar o fisiologismo mais descarado”.

Ele cita a reforma ministerial abortada como exemplo de “espetáculo triste, com alguns condestáveis da República bancando o Severino, querendo ministérios para seus parentes ou apaniguados. E a absoluta falta de critério. Houve candidatos que foram apontados para três ministérios”. Peres se espanta com o fato de o presidente da República não ter força sequer para “estabelecer critérios básicos para os aliados”, como por exemplo: quem estiver respondendo a processo não pode ser ministro. Esse critério básico serviria para evitar o desgaste de o presidente da República ter que vir a público defender o ministro Romero Jucá, nomeado para o Ministério da Previdência por pressão do PMDB, e que responde a uma série de processos.

Isso acontece talvez “porque ele não se sinta amparado pelos republicanos”, divaga Jefferson Peres, para completar: “Só mesmo uma análise sociológica para saber o que aconteceu no país para se chegar a uma exacerbação dessa logo no governo do PT, que tinha a bandeira esquerdista da justiça social e a da ética, parecia uma UDN de esquerda e, de repente, foi-se a ideologia. E a ética também”.

Já o senador Cristovam Buarque, do PT, tem na federalização da educação, com a manutenção da descentralização gerencial e liberdade pedagógica, a solução para o que chama de republicanização do país. Para tal, segundo sua proposta, seria preciso criar metas que todas as escolas teriam que cumprir, a começar pelo salário e qualificação dos professores. Para serem contratados pelo município ou pelo estado, teriam que passar por um concurso público federal e receberiam um salário mínimo pago pelo governo federal. Prefeitura ou estado que quisesse poderia aumentar esse piso.

Outra meta seria definir padrões mínimos para edificações e equipamentos pedagógicos. “Hoje, trinta mil escolas não têm banheiro, vinte mil não têm luz elétrica. O governo federal deveria definir um mínimo para o funcionamento das escolas: todas têm que ter piso de cimento e não de barro; têm que ter paredes de tijolo e não de taipa; têm que ter um teto que não seja de zinco; têm que ter um número mínimo de salas de aulas. E também um mínimo de televisões e de computadores”, descreve Cristovam Buarque.

Por fim, seriam estabelecidos parâmetros mínimos de conteúdo. “Hoje, se o prefeito quiser, ele pode fazer um aluno passar sem fazer prova: 52% de crianças da quarta série não sabem escrever”, ressalta. Estabelecidos esses pisos, Cristovam Buarque propõe a criação de uma lei de responsabilidade educacional, que puniria prefeitos e governadores que não cumprissem as metas mínimas. “Quem não cumprir a meta do programa de alfabetização fica inelegível; quem tiver criança fora da escola fica inelegível; quem pagar menos de um certo piso ao professor fica inelegível. Assim como fica inelegível, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, quem gastar mais de 60% do orçamento com o funcionalismo público”, exemplifica.

O ex-ministro da Educação é a favor também de dar o direito às famílias de pôr as crianças na escola aos quatro anos, o que tentou estabelecer nos poucos meses em que esteve no MEC, sem sucesso. “Criança que entra na escola aos seis ou sete anos não tem condições de se recuperar, salvo exceções”, garante ele. E, finalmente, seria preciso tornar obrigatório o ensino médio. “O Brasil é dos poucos países do mundo em que só é obrigatória escola até os 14, 15 anos”, ressalta Cristovam Buarque.

Segundo ele, não é preciso muito dinheiro para mudar o quadro da educação no país. “Para se atingir o ideal, teríamos que ter, em cinco, seis anos, mais R$ 20 bilhões, além dos R$ 6 bilhões já gastos hoje. Mas no primeiro ano bastaria dobrar o orçamento, pouco mais de 1% da receita do governo federal”. Ele propõe a criação de um fundo nacional que contingenciaria vários gastos em benefício da educação.

***

José Carlos Barbosa Moreira, professor da Faculdade de Direito da UERJ, escreve protestando contra o emprego do adjetivo republicano como sinônimo de “democrático, igualitário, anticorporativo, favorável à inclusão social”.

É sempre bom lembrar, diz ele, que, atualmente, vários dos países mais democráticos, igualitários, são monarquias: além da Noruega (que há anos ocupa o 1 lugar na classificação mundial pela qualidade de vida), a Suécia, a Dinamarca, a Holanda. “A própria Espanha, embora ainda a certa distância, caminha nesse sentido”.

Enquanto isso, pergunta o professor, quantas repúblicas mundo afora podem exibir as mesmas credenciais? Ele cita a América Latina, onde só há repúblicas, e pergunta se “o panorama político e social de todos esses países justifica o sentido laudatório que se dá a expressões como valores republicanos, espírito republicano e outras que tais”.


O Globo

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