A mudança de comportamento começou a manifestar-se na campanha para a eleição presidencial de 2002. Até então, sempre que procurado por jornalistas, o líder oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva estava tão disponível quanto um táxi estacionado no ponto. Iniciada a corrida, o candidato do PT se foi retraindo. Alguém o convencera de que maior seria a chance de vitória quanto menos explícito fosse.
Os inspiradores da estratégia fugitiva achavam arriscado detalhar planos e projetos inevitavelmente controvertidos. Mais perigosa ainda seria a exposição de Lula a matilhas de repórteres decididos a buscar a verdade no matagal dos eufemismos e da conversa fiada. Um semeador de sonhos, isto era Lula aos olhos das multidões. E sonhos podem ser sonhados sem legendas.
Deu certo. Aos votos cativos do PT juntaram-se os de eleitores seduzidos não pelo que Lula dissera, mas pelo que deixara de dizer. A esperança venceu o medo sem que a maioria dos brasileiros pudesse vislumbrar o rosto do novo tempo. Que rumos tomariam a educação, a saúde, a segurança pública, a economia? Quais baús ideológicos acabariam atirados ao mar pelos tripulantes do barco petista, batido pelos ventos da política de alianças partidárias?
O que mudara na mente e na alma do ex-metalúrgico que chegara ao poder? Em que se tornara, enfim, o Lula presidente da República? Era o que o Brasil queria saber no fim de 2002.
Queria e continua querendo. Instalado no Planalto, Lula incorporou (e radicalizou) o estilo do candidato arredio. Nenhum presidente falou tanto. Nenhum disse tão pouco.
Falante compulsivo, produz improvisos quase todos os dias. Nada diz de substancial. O Lula que amava o debate, rápido no gatilho retórico, sem medo de duelos, esse não existe mais.
Em 27 meses de mandato, o presidente não concedeu nenhuma entrevista coletiva de verdade, consolidada no modelo americano. Parece mentira: nenhuma. Coletivas só merecem tal nome quando reúnem jornalistas livremente indicados pelos veículos, prontos para tratar das questões que afligem a rua e travar embates reveladores.
Não têm serventia saraus com jornalistas convidados só depois de submetidos à triagem do Planalto, nem reuniões com radialistas em clima de chá de senhoras. Números oficiais informam que, desde a posse, Lula já concedeu 56 entrevistas coletivas. Ou foram encontros secretos ou alguém reinventou a estatística.
Governantes gostam de aplausos, não de perguntas: os antecessores do atual presidente decerto adorariam ter feito o que Lula faz. Mas cederam à evidência de que coletivas transmitidas pela TV figuram entre os deveres do cargo. Sempre obrigam o entrevistado a prestar contas à nação. Implodem argumentos fantasiosos e eliminam zonas de sombra.
Em recente improviso, Lula afirmou que o ministro Romero Jucá é alvo de meras ''insinuações''. Numa coletiva, o argumento seria soterrado por montanhas de provas. Entrevistas assim provocam constrangimentos. Mas são inevitáveis.
Coragem, presidente.
Sucesso não dispensa a reza
Em visita aos Estados Unidos, o ministro Antonio Palocci traiu inquietações que não costuma revelar. ''Vamos rezar para que mudanças em outros países não prejudiquem os emergentes'', convidou. Horas mais tarde, estava de volta o otimista profissional. ''Precisamos nos acostumar com o sucesso do Brasil'', recomendou o médico que cuida da política econômica.
Faz sentido. O país lidera com folga, por exemplo, o campeonato mundial de juros: a taxa de 13% é a única com mais de um dígito. Estamos humilhando a Turquia, velha campeã. Sucesso é isso aí.
Ladroeira municipal
Alguns agem solitariamente, outros comandam quadrilhas. O que não muda é o alvo da roubalheira: verbas federais. Baseada em incertas promovidas nos últimos dois anos, a Controladoria Geral da União descobriu que 20% do total dos recursos remetidos por Brasília acabaram nos bolsos de prefeitos ou assessores.
Escolhidas por sorteio, já foram vasculhadas as contas de 741 cidades de diferentes Estados. Chefe dos controladores, Waldir Pires sustenta que ocorreram patifarias em 90% dos lugares visitados. Por enquanto, ninguém foi preso.
Samba ou salsa?
Na prática, Tilden Santiago parece embaixador de Cuba no Brasil. Há meses, em Havana, defendeu publicamente o fuzilamento de três militantes da oposição capturados quando fugiam num barco. ''Fidel está se defendendo da desestabilização provocada pelos Estados Unidos'', argumentou.
''Nosso modelo deve ser o regime cubano'', ensinou. Ex-padre, ex-jornalista, ex-deputado, desdenha do risco de virar ex-embaixador. ''Lula não é pequeno'', diz. ''E antecipei ao José Dirceu o que diria''. Dirceu aprovou: ele se derrete com elogios a Fidel, que considera ''um segundo pai''.
Drenagem do pântano
Sejam bem-vindas quaisquer propostas e medidas que ajudem a drenar o pântano existente no Congresso. É o caso do projeto de lei que proíbe a prática do nepotismo na Câmara. Se aprovado, terá chegado ao fim a farra de parentes contratados para fantasiar-se de assessor
A notícia é boa, mas não afeta a gastança: familiares serão substituídos por afilhados. Pagos com a verba de gabinete, que chegará a R$ 53 mil mensais graças ao aumento salarial de 15% conferido ao funcionalismo federal
A drenagem mal começou. Outras providências devem ser instituídas com urgência, e aplicadas com especial rigor no lamaçal administrado pelo deputado Severino Cavalcanti (foto). Uma delas: reduzir a três os assessores homiziados em cada gabinete. É assim em países sérios.
Os números de fevereiro informaram que a Câmara abrigava 15.666 funcionários, dos quais 12.087 haviam sido nomeados sem concurso. O Orçamento de 2005 ronda os R$ 2,5 bilhões. É mais que afronta. É um atentado ao pudor.
Informado de que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, pode ser candidato a vice de Lula em 2006, o Cabôco concluiu que lhe restavam duas opções: desmentir a notícia (e rasgar a ficha de filiação ao PMDB) ou renunciar ao STF e ir à luta. Como Jobim preferiu o silêncio, o Cabôco pergunta: isso é ético?
Pajelanças enganosas
As pajelanças da semana passada atingiram o clímax com a montagem, no Palácio do Planalto, de um painel surpreendentemente harmonioso: ternos escuros não combinam com cocares multicoloridos. Só no Dia do Índio, que juntou em Brasília caciques das selvas e das cidades. Ranzinza militante, o velho Raoni topou arriar a borduna famosa para sorrir ao lado de Lula, ministros e pajés da Funai. Todos pareciam felizes.
O presidente da República acabara de homologar formalmente a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. É uma imensidão de terra: 1,758 milhão de hectares. E uma imensidão de problemas: além de 15 mil índios, a reserva abriga uma cidade (contornada pela demarcação) e plantadores de arroz que cultivam, somadas as propriedades, 100 mil hectares. Parece pouco. É o bastante para levá-los a reagir com declarações de guerra.
A terra que sobra no norte falta às aldeias de Dourados, em Mato Grosso do Sul, cenário do silencioso massacre que vem matando crianças em série e transformando adultos em zumbis. Vítimas da fome e da falta de assistência médica, morreram só neste ano mais de 30 crianças. Nenhuma havia chegado ao fim da primeira infância.
Os adultos tiveram a alma assassinada por invasores brancos. O confisco de usos e costumes ancestrais abriu passagem a doenças estranhas, ao alcoolismo, à corrupção. As tribos de Mato Grosso não mereceram do governo as atenções prometidas por Lula a Raoni e seus companheiros. Na nova reserva, a paz enfim reinará.
Lula assegurou que dispõe de poderes e instrumentos para prometer um cotidiano tranqüilo aos habitantes dessas terras conflagradas. Além da rebelião dos arrozeiros, a reserva enfrenta a cobiça de garimpeiro à caça de ouro e diamante. Se pode tanto, por que o governo ainda não conseguiu interromper o extermínio em Dourados?
O fantasioso discurso de Lula corre o risco de colidir com a realidade. Ao longo da semana marcada por contrastes, confirmou-se uma suspeita perturbadora: cinco séculos depois das primeiras caravelas, também o governo Lula não conseguiu definir diretrizes essenciais à montagem de uma política indigenista consistente. Cada caso é um caso, sugere a performance da velha e bisonha Funai, que confere tratamentos distintos a problemas idênticos.
Lula acredita ter resolvido a questão indígena. Não tardará a sentir-se perdido na selva.
Objetividade leva a taça
Rubens Teodoro de Arruda, vice de Lula no sindicato dos metalúrgicos, avaliou o desempenho do amigo:
''Às vezes meu Baiano dá umas pisadas na bola violentas. Mas, na qualidade de ex-torneiro mecânico, até que está fazendo muita coisa''.
É isso.
JB
Nenhum comentário:
Postar um comentário