"Você quer dar uma volta na comunidade?" A pergunta era a porta aberta para conhecermos um pouco do mundo, cada vez mais estranho, para a maioria dos moradores da Zona Sul. Era a noite de domingo passado na Vila Vintém, Zona Oeste do Rio. O morador que nos acompanhou, avisou: "Você vai ver algumas armas por aí, mas não se preocupe." Preparei-me para "não me preocupar" com pistolas. Na entrada de uma das ruelas, o que vimos foi um jovem, em pose militar, segurando um baita fuzil.
Passamos rente ao rapaz do fuzil, fingindo calma. Os moradores passavam por ele exibindo calma genuína. Fato banal em qualquer favela do Rio esse tipo de cena. Dizem que só aquela favela tem mais de 300 fuzis, arsenal sob o comando da autoridade local.
O Rio é assim, como se sabe. Tiranos do tráfico de drogas dominam áreas diferentes e travam uma guerra entre si pelo controle das zonas mais rentáveis. E, nas guerras, os cidadãos perdem o direito de ir e vir e são colhidos pelo fogo cruzado. Muita gente acha que no Rio acontece o mesmo que em qualquer outro centro urbano, onde há drogas, chefões do tráfico e áreas pobres. Minha sensação é de que aqui a situação é muito mais grave e que fatos, tratados com o desdém das rotinas, espantariam outras cidades. Na quinta-feira da semana que começava naquele domingo, bandidos armados invadiram um hospital perto dali e fuzilaram dois presos internados. Mais um evento da guerra do tráfico.
O que nos levou à Vila Vintém foi mais um "Conexões Urbanas". A Prefeitura do Rio promove shows junto com o AfroReggae e em parceria com empresas, emissoras de rádio, Canal Futura e a Cufa (Central Única das Favelas) nas áreas mais conturbadas da cidade.
Aquele era o 39 "Conexões". O evento é feito mensalmente desde 2000, com pequenas interrupções. Normalmente, as guerras cessam quando ele chega. O AfroReggae convida pessoas de outras áreas — e outros mundos — para ver de perto o que é e como se vive naquele lado do Rio.
Sob a batuta da subsecretária de eventos, Ana Maria Maia, a Prefeitura leva o que há de melhor em termos de estrutura para show.
— Levamos para o "Conexões" o mesmo que colocamos na praia — conta Ana Maria, dentro de um dos trailers.
Pelo pouco passeio que fizemos, a maioria das ruas e ruelas era asfaltada. Havia uma parte com sobrados bem construídos, que o morador definiu como "a parte nobre". Dentro da favela, as ruas eram espremidas, escuras e a qualidade da construção das casas foi piorando. Intolerável era o cheiro do pequeno riacho que cruzamos.
Em cada quadra, uma Igreja Assembléia de Deus. Igreja Católica havia apenas uma, na praça central. Um jovem morador da favela de Vigário Geral contou que freqüenta a Igreja Universal:
— Eu nunca me senti tão bem numa igreja como me sinto na Universal, mas eles são meio radicais. Não aceitam a existência de terreiro. Eu gosto da Universal, mas respeito outras religiões.
Na volta à quadra do palco, começou a chover. Uma chuva forte havia caído naquele domingo na Zona Sul e fora nos acompanhando até a Vila Vintém. Naquele momento, chovia para valer, mas o show continuava:
— Nós estamos aqui, porque esta é a nossa saga. Vamos levar nossa música para todos os lugares, para as áreas de conflito. Nós estamos em casa, estamos na Vila Vintém — anunciava o apresentador do show.
Ele falava para uma quadra vazia, espantada pelo temporal:
— Agora, quem vai estar aqui com a gente é o MV Bill!
O nome do cantor teve o efeito de uma palavra mágica: de todos os pontos, entravam moradores correndo na quadra. Jovens, crianças, mulheres com bebês no colo. A quadra foi inundada pelos sons de pura energia do cantor e de sua platéia. Ao fim de poucos minutos de MV Bill no palco, a quadra estava de novo lotada.
— Não pense que isto aqui é usado por políticos — disse Ana Maria Maia, irmã do prefeito César Maia. O pedido dela e do AfroReggae foi que o evento jamais fosse usado na cata de votos. E foi o que deixaram claro, até no período eleitoral aos políticos dos partidos da base do prefeito.
— Nem jamais aceitamos o patrocínio de qualquer empresa de bebida ou de cigarro — ressaltou José Junior, organizador do AfroReggae, que se preparava para ir para Nova York, onde o glamouroso Tribeca Film Festival verá um filme sobre a vida da banda de meninos pobres que nasceu após a chacina de Vigário Geral.
O "Conexões Urbanas" é alegria pura levada à periferia, o que permite raro momento de trégua para os cidadãos. Antes de entrar no palco, a banda AfroReggae se aquece debaixo de uma tenda. A uma ordem do vocalista Anderson, forma-se uma roda de jovens negros, sorrisos abertos, que pulam e repetem movimentos de exaurir professor de aeróbica. Anderson vai mais longe no desafio à lei da gravidade. Parece comemorar o fato de não ter ficado paraplégico após o acidente, do qual foi salvo pela perícia do doutor Paulo Niemeyer. Tanta energia era só o aquecimento para muito mais movimento no palco. Choveu durante todo o tempo do show do AfroReggae. Nem parecia. A platéia ignorava a água descendo. A noite foi concluída com Jorge Aragão. Entre um e outro, o locutor do evento foi de novo ao palco para lembrar:
— Nascemos depois de uma chacina. Na semana em que a gente comemorava 12 anos, nova tragédia atingiu a Baixada. Trinta mortos, foram trinta mortos! Isso não pode continuar acontecendo.
Os moradores ouviam em silêncio. Eles queriam música, dança, alegria. Naquela noite de paz, só a chuva não deu trégua.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, abril 24, 2005
Miriam Leitão:Música e trégua
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