Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 22, 2005

Perdão por quê?



JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES

A Casa dos Escravos, que o presidente Lula conheceu na visita à Ilha de Gorée, no Senegal, deve ser mesmo um lugar impressionante. Local onde eles eram guardados antes de serem embarcados nos navios negreiros, se aquelas paredes pudessem falar ainda assim não seriam capazes de descrever adequadamente o sofrimento de tanta gente que por lá passou. De cada um que transpôs a “Porta do Nunca Mais” com destino à América.

Foi sob o impacto de tão sinistro testemunho do horror que o presidente pediu perdão aos africanos, pelos sofrimentos do tempo da escravidão. Mas ele não devia ter feito isso, até mesmo para bem honrar a memória das vítimas.

Não faz sentido os brasileiros pedirem perdão aos africanos (Lula crê que tem uma delegação nossa para fazê-lo, mas não tem), se a maior parte da nossa população é descendente de africanos escravizados. Metade de nós se declara preto ou pardo ao IBGE e, como pesquisas genéticas já demonstraram, mais da metade dos que se declaram brancos tem ancestrais africanos (ou indígenas, também escravizados nos tempos coloniais). Se somos, na maior parte, descendentes de escravos, por que devemos pedir desculpas a alguém?

O gesto do presidente revela também — como dizer, sem parecer mal-educado? — um certo desconhecimento da história da escravidão moderna. A África nunca foi uma vítima passiva da maldade dos europeus. O comércio de escravos preexistiu à chegada dos portugueses e sempre foi um negócio controlado pelos dirigentes das sociedades africanas, até o fim. E só acabou porque os ingleses, no século XIX, resolveram não mais tolerá-lo. Se devemos (toda a Humanidade) alguma coisa a alguém, é um agradecimento à Inglaterra.

Beneficiavam-se da escravização e do tráfico as elites africanas, os comerciantes de escravos (africanos, europeus, brasileiros etc.) e aqueles que os compravam e viviam do trabalho deles. No nosso caso, muita gente, pois o escravo era uma mercadoria relativamente barata, até 1850, data em que acabou o tráfico transatlântico. E como não era incomum a concessão de alforrias, no Brasil, houve muito ex-escravo (e mais ainda descendentes) que se tornou dono de escravo.

Por exemplo: José Antônio, nascido escravo no Brasil, de cor preta, morreu homem livre, em 1830, na cidade do Rio de Janeiro. Possuía 5 cativos (três deles africanos de 20 anos, idade na qual o preço atingia o ápice) e duas canoas, entre outros bens. Provavelmente, era um empresário do ramo de transporte da Baía de Guanabara. O seu inventário está guardado no Arquivo Nacional. Como ele, havia muitos outros.

Por exemplo: na região de Campos de Goitacazes, em fins do século XVIII, tomada de canaviais, um terço da classe senhorial era formada de pessoas “de cor”, como assinalavam os recenseamentos da época. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão não porque somos visceralmente racistas, como se repete por aí. Mas porque a escravidão era fortemente enraizada e não encontrava legitimidade em bases raciais. Até 1850, o mercado se manteve aberto a todos, sem distinção de cor, nacionalidade, sexo etc. Os números que os demógrafos hoje recolhem apenas confirmam o que Joaquim Nabuco já dizia. Diante deste nosso passado, como saber a quem pedir desculpas?

Uma coisa é certa: a uma África assim tão imprecisamente nomeada é que não é, pois isso só contribui para encobrir a responsabilidade dos dirigentes africanos daquela época no comércio de escravos. Os que passaram pela “porta do nunca mais” não merecem isso. Além do mais, o gesto não deixa de ser uma espécie de absolvição dos dirigentes africanos dos nossos tempos (Lula declarou que a atual miséria africana não se deve à “incompetência” dos africanos, mas à sangria do tráfico), que mantiveram e mantêm até hoje o povaréu nessa miséria. E que miséria, e quanto sofrimento, na forma da fome e da guerra incessantes.

O presidente Lula devia escolher melhor suas amizades, devia evitar a companhia dos que olham as pessoas e só enxergam fantasias do tipo “raça”, “classe”, “movimento” e tolices assemelhadas. Se os Orixás, ou o Deus dos Cristãos, lhes concedessem essa graça, não insultaria os mortos, pensando homenageá-los, nem ofenderia os vivos, supondo representá-los.

P.S.

Se o presidente tiver tempo, recomenda-se a leitura do livro “Em Costas Negras” (Cia. das Letras), do historiador Manolo Florentino. É bem escrito, tem método e contém mui interessantes informações acerca do assunto. Recomenda-se também Joaquim Nabuco, é claro.
JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
O Globo

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