Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 23, 2005

Merval Pereira: Terra em transe

Nem mesmo o mais ensandecido Glauber Rocha imaginaria uma terra tão permanentemente em transe quanto esta, governada por um autodefinido "líder sindicalista que está presidente". Pois este líder cismou de mudar a geografia econômica do mundo substituindo o maior mercado, os Estados Unidos, por uma coisa chamada Comunidade Sul-Americana de Nações. E baseia toda a sua estratégia política e comercial no fortalecimento de um Mercosul francamente em decadência, rejeitado pela Argentina; em visitas simbólicas a países africanos — onde se fantasia de rei de uma tribo de Gana — ou investindo na aproximação com países árabes. Como diria o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, "muito blablablá" e poucos negócios.

Para quem, como Lula, vive de símbolos, que muitas vezes são meros simulacros, para usar a linguagem da moderna filosofia de Jean Baudrillard, os últimos dias foram um prato cheio. A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal contra a intervenção no sistema de saúde do Rio de Janeiro, explicitando seu caráter primordialmente político, é uma lição de democracia que não deveria ser esquecida pelo governo.

O episódio, muito bem explorado pelo prefeito Cesar Maia, outro especialista em simulacros que batizou de factóides, revela mais uma vez a tendência autoritária do governo federal, que volta e meia se deixa flagrar. O autoritarismo do PT não estaria patente apenas na dificuldade de realizar alianças políticas, mas na tentativa de controlar a imprensa e as produções culturais, com a criação de conselhos estatais, e em declarações de ministros que deixariam à mostra uma face política radical que estaria apenas aguardando um bom momento para se manifestar mais claramente.

A partir do projeto do Ministério da Cultura, de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, o poder público teria condições de interferir na programação da TV e direcionar o financiamento de toda a produção cultural para temas que estivessem em sintonia com as metas sociais do governo. O Conselho Nacional de Jornalismo teria a finalidade de controlar o exercício da profissão e poderes para punir, até mesmo com a cassação do registro profissional, os jornalistas que infringissem normas de conduta que seriam estabelecidas pelo próprio Conselho.

Assim como o simulacro da intervenção na saúde do Rio, rejeitado pelo Supremo, as iniciativas citadas acima foram rejeitadas pela sociedade civil organizada, que obrigou o governo a recuar. Um avanço, se pensarmos que na vizinha Venezuela, onde reina o "companheiro" Hugo Chávez, leis semelhantes foram aprovadas por um Congresso subjugado, e o Supremo, totalmente controlado pelo "superpresidente", não teria condições de negar-lhe razão.

Também no Equador o presidente deposto Lucio Gutierrez — que já recebeu asilo do Brasil — manipulou a Suprema Corte para anular processos contra seus amigos, especialmente os contra o ex-presidente deposto por corrupção Abdalá Bucaram. Por uma coincidência preocupante, Chávez e Gutierrez, militares golpistas que chegaram ao poder pelo voto, são aliados de Lula nessa tal Comunidade Sul-Americana de Nações.

O superpresidencialismo é fenômeno político que vem se alastrando por democracias frágeis, como a da Rússia, por exemplo, em que os sinais externos de democracia são mantidos, mas sob o controle político do presidente, que assim pode manipular as decisões do Legislativo e do Judiciário sem ser acusado de ditatorial, embora o sendo na maioria dos casos.

No Brasil do presidente Lula, a resposta à tendência de governar por medidas provisórias e de fazer um "presidencialismo de coalizão" em que o PT é mais igual do que os demais partidos aliados, tem sido rejeitada sistematicamente, seja por derrotas em votações expressivas, seja pelo surgimento da figura de Severino Cavalcanti para presidir a Câmara, outro personagem saído diretamente da imaginação glauberiana para a política nacional.

Também na questão dos impostos o governo Lula revela sua tendência à centralização, embora apenas tenha aperfeiçoado o hábito, que veio do governo Fernando Henrique. E foi com uma carga simbólica terrível que o governador de Minas, Aécio Neves, apoiado por outros governadores, cobrou no dia de Tiradentes, que morreu por se rebelar contra os impostos da Coroa portuguesa, a divisão do bolo tributário mais igualitariamente entre governo federal, estados e municípios.

A opção política pela descentralização foi um marco no processo de redemocratização, após pouco mais de duas décadas de um regime militar ditatorial. Na Assembléia Constituinte de 1988, o esvaziamento fiscal e financeiro do governo central e o fortalecimento dos governos estaduais e municipais foram decisões políticas tomadas com o objetivo de equilibrar a federação.

Antes da reforma "radicalmente descentralizadora" da Constituição de 1988, a União arrecadava diretamente 70% da carga tributária, o equivalente a 22,4% do PIB. Com a criação das diversas contribuições, que não são repartidas entre estados e municípios, essa carga hoje voltou a ser de 68%. Em 1988, a única contribuição vigente era o Finsocial, que correspondia a 6,5% da arrecadação federal. Hoje, as contribuições respondem por 44% dessa arrecadação, especialmente após o aumento da Cofins.

A revolta dos governadores tem um peso simbólico que não deveria ser negligenciado pelo governo federal. Representa mais do que simplesmente tirar um pedaço do orçamento federal. O que se quer mesmo é fazer valer a federação, impedindo que o governo central se imponha em uma relação desequilibrada com estados e municípios.


O GLOBO

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