A agenda de trabalho de Luiz Inácio Lula da Silva causa estranheza e preocupação. Pelos compromissos listados, não se vê um presidente que tenha interesse nos assuntos administrativos, muito menos no estudo e enfrentamento dos grandes e graves problemas nacionais. Atividades são marcadas sem nenhum critério seletivo, como se a ação governamental causasse tédio e enfado ao primeiro-mandatário da República. A agenda de trabalho é pobre, desconexa e em vários dias está quase que totalmente vazia, como se o país estivesse vivendo em pleno céu de brigadeiro. Um exemplo é 6 de janeiro de 2004, quando teve dois compromissos: recebeu o presidente do Flamengo e o da fábrica de pneus Michelin. Mas o pior estava por vir. Seis dias depois teve uma única audiência: com o presidente do Clube do Choro de Brasília.
A agenda de trabalho do presidente Lula é pobre, desconexa e em vários dias está quase que totalmente vazia |
O entusiasmo pelo Fome Zero não passou de fogo de palha. O presidente recebeu José Graziano, ministro responsável pelo programa, três vezes no primeiro mês de governo. E só. Até a sua demissão, um ano depois, não foi recebido em audiência nem uma vez sequer. Mesmo assim, a 3 de fevereiro de 2004, Lula fez questão de comemorar em palácio um ano do Fome Zero, apesar dos resultados pífios do programa, e uma semana depois inaugurou até a Expo Fome Zero.
Já a ministra Emília Fernandes, responsável pela Secretaria Especial de Política para as Mulheres, teve a mesma sorte que a sua sucessora, Nilcéa Freire. Foram recebidas uma vez pelo presidente. A agenda estava fechada para discutir os problemas enfrentados pelas mulheres; isso em um país sexista como o Brasil. Contudo Lula teve tempo para receber duas vezes o cantor Zeca Pagodinho e dar uma longa entrevista -nunca exibida- para o animador Ratinho, seu amigo pessoal.
O Nordeste sempre esteve presente nas lembranças sentimentais do presidente. Pena que ficou somente nas lembranças. Em 2003, o ministro Ciro Gomes, principal responsável pela política do governo federal na região, não foi recebido por Lula uma vez sequer. Somente deu seu ar da graça no terceiro andar do Palácio do Planalto no dia 13 de fevereiro de 2004, 408 dias após tomar posse no cargo. Um simples assessor especial de Lula, Marco Aurélio Garcia, teve o dobro das audiências formais do ministro Ciro.
O cuidado no trato da coisa pública, marca que caracterizou o Partido dos Trabalhadores quando estava na oposição, não parece estar entre as principais preocupações de Lula. Do ministro Fernando Neves da Silva, presidente da Comissão de Ética Pública, não há registro de audiência formal com Lula. Já Waldir Pires, da Controladoria Geral da União, como é identificado na estrutura do Palácio do Planalto, segundo o site oficial da Presidência, foi recebido duas vezes, nenhuma em 2003, mas como ministro de Estado do Controle e da Transparência -estranha denominação de ministério. Controle não se sabe de quê, transparência muito menos.
Os exemplos da incúria governamental são diversos. Em 28 meses de governo, segundo a agenda, não houve nenhuma reunião do presidente com um grupo de ministros para tratar de assunto relevante, um tema de interface dos ministérios. Pelo contrário, quando ocorreram reuniões, foram de todo o ministério -e são três dezenas de ministros! Houve uma em janeiro de 2003, outras duas em fevereiro e março e uma quarta em maio do mesmo ano. Aí, sem nenhum aviso ou avaliação, acabaram-se as reuniões em 2003. Nove meses depois, em fevereiro de 2004, foi convocada nova reunião ministerial; e outra em junho. Seis meses depois, Lula fez mais uma reunião que se estendeu por dois dias, em dezembro. Desta vez foram 16 horas de reunião, também sem resultados práticos.
O abandono das tarefas fundamentais de governo fica mais evidente quando consultamos os pronunciamentos públicos do presidente. Em 2003 foram 279 e em 2004, 305. Dos discursos, 27% trataram de política externa. Em alguns meses saltaram para 50%, como novembro de 2003 e janeiro de 2004. É como se fôssemos uma potência imperial sem o saber. É provável que nem George W. Bush tenha tratado tanto de política externa como Lula. Contudo continuamos tendo papel irrelevante na política mundial e mantemos inalterada a nossa participação no comércio internacional.
No discurso do presidente após a cerimônia de posse pode estar a resposta ao descaso administrativo. Disse que estava "convencido de que hoje não existe, no Brasil, nenhum brasileiro ou brasileira mais conhecedor da realidade e das dificuldades que vamos enfrentar". Isto é, já sabia, antes de iniciar o governo, tudo o que deveria fazer, pois era o maior "conhecedor da realidade". Mais adiante falou: "Estou convencido e quero afirmar a vocês; não existe, na face da Terra, nenhum homem mais otimista que eu". Ou seja, ele não só já conhecia, como sabia de antemão o que realizar.
Sendo assim, de nada necessita: leitura, estudo, reuniões de trabalho, visitas aos locais das obras governamentais ou elaboração de planos. Nada. Tudo isso é perda de tempo. Como tem certeza messiânica da realização, não precisa da política.
FOLHA DE S PAULO
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