Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 29, 2005

Luiz Garcia :Tiros sem misericórdia?

No artigo de terça-feira, confessei a suspeita de que a campanha do desarmamento, com plebiscito marcado para outubro, estava perdendo alento. A reação ao artigo, mesmo sem ter o rigor de uma pesquisa de opinião, sugere que nossa pólvora está mesmo molhada.


Não faltam baldes d'água nos e-mails recebidos. São aparentes algumas dúvidas e restrições sinceras — assim como equívocos aparentemente honestos. Vamos a uma amostra. Mas antes é irresistível a tentação de abrir os trabalhos com a mais espetacular de todas as denúncias. Literalmente: "Prezado amigo: O desarmamento é uma prática dos comunas antes de tomarem o poder pelas armas. Quem viver, verá. O preço da Liberdade é a eterna vigilância." Não identifico o signatário dado o risco de terem feito brincadeira de mau gosto com o nome de algum inocente cidadão.

Vamos a quem, aparentemente, falou sério:

1. "...não acredito mais nessa história de desarmamento no Brasil de hoje. Minha opinião é que falta vontade e competência do governo para fiscalizar o comércio de armas, reprimir o tráfico bélico e garantir o acesso às armas legalizadas somente aos cidadãos preparados para tal... Detesto esses fabricantes de armas e seus lucros e lobbies nojentos, mas as armas nunca deixarão de existir enquanto houver homens dispostos a matar para alcançar seus objetivos. O Estado organizado deveria ser a resposta da civilização aos bárbaros. Mas, onde está o Estado? Os bárbaros, esses, estão à nossa frente."

2. "Discordo do seu ponto de vista que a Câmara está cheia de machistas. Ela representa, mal ou bem, as expectativas da população, e com certeza eles já consultaram as bases e verificaram que a quantidade de pessoas que quer ficar indefesa frente ao banditismo crescente, diminuiu, graças às falácias deste governo que prometeu muito na área de segurança no ano passado e resultou num parto de montanha. Na Suíça, talvez seu comentário seja válido."

"O 'x' da questão está exatamente na noção, em nenhum momento negada, de que a Campanha do Desarmamento levaria a uma queda geral nos índices de criminalidade. Esta foi a percepção da população e esta é a visão de muitas das ONGs que participam da campanha. A prova está na outra campanha Eu Sou Da Paz e nas diversas passeatas e manifestações pedindo paz. Como diz o Jabor, estão pedindo paz pra quem?! Pra mim é que não é!!! Se uns acham que colocar uma camiseta e soltar balões brancos vai afetar o pensamento da bandidagem, a recente chacina da Baixada deixou claro que não..."

Procurei selecionar reações que não me pareceram originárias do lobby das armas. Posso ter pecado por ingenuidade; não será a primeira vez. Seja como for, aí está o disponível retrato do desencanto com o desarmamento: é menos amor às armas do que desalento com a solução proposta.

Ainda com alento, lembremos aos de boa-fé que continua óbvio o que era evidente no começo da campanha: com armas de fogo por perto, brigas de amantes, parentes ou amigos sempre terão mais chances de terminar em tiros — inclusive nas crises românticas entre adolescentes. Acontece todos os dias. Às vezes, morrem um ou dois, protagonistas ou testemunhas.

Também é notícia freqüente a história do neurastênico que acaba com a festa no playground de seu prédio com rajadas de tiros. Não raro, atingindo crianças. Às vezes, morrem uma ou duas.

Continuam igualmente comuns as histórias de meninos que mostram aos amigos, às vezes em casa, outras no banheiro do colégio, como funciona o revólver do papai. Às vezes, morrem um ou dois.

Essas são histórias tristes comuns nos jornais.

Se você ainda exige outros tipos de argumentos, responda por favor: quantos episódios conhece em que um cidadão brasileiro, valente mas amador nesse tipo de ação, empunhou seu .38 e botou para correr os bandidos que invadiram sua casa ou o cercaram numa rua ou estacionamento e ameaçaram sua família e seu patrimônio? Três, duas, uma? Ou, seja franco, nenhuma?

Compreende-se, com a necessária dose de piedade, a teimosia dos que adoram uma teoria conspiratória. Mas é duro entender quem sai da briga por desalento ou falta de fôlego ético.

Repito que estamos arriscados a perder a boa luta. Será triste uma derrota para os bobalhões que acreditam no direito da força. Pior ainda se o vencedor da briga vier a ser o nosso próprio desânimo.



O GLOBO

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