O presidente Lula deve estar se perguntando por que, afinal de contas, não aceitou antes dar uma entrevista coletiva, como lhe propôs por dois anos seu amigo e ex-secretário de Imprensa Ricardo Kotscho. Depois de uma hora e meia de perguntas basicamente econômicas, saiu da experiência certamente mais seguro de que pode responder a qualquer indagação, e reiterou, de maneira organizada e irrefutável, o apoio à política econômica em vigor.
Embora muitas das respostas não tenham sido satisfatórias, especialmente quando tentou explicar que não poderia julgar ministros seus, como Romero Jucá, da Previdência, ou Henrique Meirelles do Banco Central, antes que sejam considerados culpados pela Justiça, a entrevista não doeu, e serviu até mesmo para mandar recados para dentro do governo.
Além de não ser verdadeira a afirmação de que sempre se pautou por não prejulgar as pessoas — podia até ser assim no plano pessoal, mas no político essa não era a regra petista na oposição — Lula não tinha qualquer necessidade de nomear um ministro, no caso do senador Romero Jucá, que já estava respondendo a processo. No caso do presidente do Banco Central, realmente seria inadequado demitir seu presidente devido às acusações em que são possíveis várias interpretações legais.
Mexer na equipe econômica, aliás, é o que o presidente Lula só fará em casos extremos, como ficou claro durante toda a entrevista. Na verdade, o que se tirou de melhor dela foi talvez a mais enfática defesa da política econômica do ministro Antonio Palocci, de quem se diz "unha e carne", o que sinaliza que não há espaço para aventuras nessa área.
O presidente Lula, aliás, nunca esteve tão conservador, tão paternalista, quanto ontem, quando usou a metáfora preferida da família para explicar várias questões, desde o aumento salarial dos militares até o salário-mínimo. E nunca havia ficado tão explícita sua determinação de não contaminar a economia com questões ideológicas.
Até mesmo a autonomia do Banco Central, que mais uma vez está sob fogo cruzado dos críticos dos juros altos, foi tratada com surpreendente naturalidade pelo presidente Lula. Este é um assunto que provoca urticária nos setores mais esquerdistas do petismo, e é um dos alvos dos que são contrários à política econômica. Pois Lula tratou-o com desassombro, afirmando mesmo que se ficar convencido de que esta é a melhor solução, não terá dúvidas em adotá-la.
Para quem já havia classificado de bravatas muitas das reivindicações feitas durante o período oposicionista, não foi surpresa Lula afirmar que só faria aventuras na economia, ou "pirotecnia", se ainda tivesse 30 anos. Quase sessentão, Lula está mais para o pai que quer dar estabilidade à sua família do que para o revolucionário que um dia já apavorou a classe média brasileira.
Ele agora apavora de outra maneira, mais fácil de ser contornada por uma boa campanha publicitária: apavora pelos improvisos em que freqüentemente fere, não apenas a língua portuguesa — ontem, durante a entrevista, quase não acertou as concordâncias — mas o bom-senso das pessoas; apavora pela ignorância de temas mais corriqueiros, como a questão dos juros bancários ou as pesquisas do IBGE; pela incapacidade de decidir e, apavora, enfim, pela demonstração diária de que, embora seja um político notável e um homem de bem, nem ele nem o PT estavam preparados para governar.
Apesar de tudo, considera tarefa difícil achar erros em um governo "que acerta tanto", e continua com a mania de que está inaugurando o mundo na sua administração. O presidente Lula parece não conseguir conectar causa e efeito, o que ficou claro na entrevista coletiva, mesmo que ninguém tivesse tocado na ferida. Ele mesmo, em uma entrevista para a TV da CUT, havia chamado a atenção para o fato de que o país vive um paradoxo: altas taxas de juros para conter a inflação, e ao mesmo tempo uma política de crédito popular que faz crescer o consumo.
Ontem, voltou a tocar no assunto, vangloriando-se da política de microcrédito, especialmente o consignado em folha de pagamento, quando ela é uma das razões para o crescimento da inflação, que antes era provocada mais pelos preços administrados e hoje é também de demanda.
A política de microcrédito começou há 30 anos em Bangladesh, quando Mohammed Yunus e alguns voluntários resolveram fazer uma experiência radical de incentivar o crédito para pessoas pobres, como maneira de estimular o desenvolvimento. Daí nasceu o famoso Grameen Bank, cuja experiência se espalhou pelo mundo.
Hoje, o microcrédito é visto como um instrumento valioso de política social, mas não tem nada a ver com uma revolução capitalista que Lula se atribui ter desencadeado. Na verdade, todo esse dinheiro no fim é subsidiado pelo governo, e juntamente com outras medidas que incham a máquina pública, é responsável pelo aumento dos gastos do governo, o que exige uma carga tributária cada vez maior.
O fato de que, assim como no governo de Fernando Henrique, essa vasta rede de proteção social é uma parte da causa do aumento dos gastos públicos não absolve o governo. Seria preciso cortar gastos em outras áreas da administração, e aprovar novas reformas estruturais, para que a economia brasileira pudesse crescer sem distorções, como prometeu Lula na entrevista coletiva. E para que os juros fossem menores.
Ele tem agora no governo o homem certo para a tarefa de cortar custos: o novo secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Murilo Portugal, que era conhecido no tempo em que ocupou a Secretaria de Tesouro do governo Fernando Henrique como "Murilo Mãos de Tesoura".
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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