27.04.2005 | Não tem jeito: quando Luiz Inácio da Silva aparece com uma carga caprichada de gomalina nos cabelos e sobe ao púlpito de algum salão refrigerado do Planalto, diante de uma platéia de burocratas dóceis, o Brasil pode esperar para ouvir alguma nova verdade universal. A última foi a revelação de que os brasileiros pagam juros altos porque são preguiçosos.
Como sempre, Lula veio de seu País das Maravilhas com a parábola pronta. É bem verdade que da última vez não tinha dado muito certo. Para apresentar-se como um presidente otimista e indulgente, que só tem olhos para o futuro, ele dissera ter sabido de corrupção no governo anterior e ter mandado o auxiliar calar-se sobre o assunto. Um crime – que a República, compreensiva, já engavetou.
Desta vez a atmosfera da parábola era mais amena. Um chope noturno entre amigos. Os personagens criados pelo presidente e seus assessores debatem juros bancários sexta-feira à noite em mesa de bar. Tudo bem, cada um se diverte como achar melhor. Mas esse brasileiro sintetizado pelo Estado-Maior de Lula deveria levantar o traseiro da cadeira – nas palavras dele – e tomar a atitude de mudar de banco no dia seguinte. O dia seguinte seria sábado, mas não seria nada grave conceder-se esta licença poética ao presidente. Grave seria conceder as outras licenças surrealistas que seu discurso pede.
Lula está certo quando procura desviar a atenção geral da taxa básica de juros do Banco Central, a famigerada Selic. É alta (está em 19,5% ao ano), mas a idéia de que é ela que trava o crescimento nacional é ignorante ou mentirosa. Basta olhar para o preço do crédito na vida real – os juros do comércio (mais de 100% ao ano), do cheque especial (mais de 150% ao ano) ou do cartão de crédito (acima de 200% ao ano) – para ver que o falatório em torno da Selic não é muito mais do que vice-presidente ocioso fazendo política.
Os bancos alegam que as taxas estratosféricas refletem os riscos de seus empréstimos, que têm alta inadimplência. Refletiriam também – ainda segundo os bancos – a pouca disponibilidade de moeda, por causa da grande quantidade recolhida compulsoriamente ao Banco Central. São velhos argumentos de mercado, que nunca foram exumados e contrapostos com a devida competência e clareza. O que se ouve eventualmente é o chororô difuso de que os bancos lucram muito, como se isto em si fosse o pecado.
O governo não quer tabelar os juros – e também está certo quanto a isto. O país já aprendeu que esses artificialismos simpáticos, movidos a critérios insondáveis, barateiam a conta no presente e a multiplicam no futuro. Mas isto não justifica que o governo se divida entre bravatas contra o próprio Banco Central (o populismo do vice-presidente e companhia) e contra a população (a nova parábola de Lula). O escândalo do spread (margem) dos bancos pode e deve ser enfrentando pelo governo. Mas é guerra longa e dolorosa no terreno da informação, dos artifícios da política monetária, da regulação e até da Justiça. Careceria, enfim, de uma estratégia minuciosa, de um plano de ação – que o governo, para variar, não tem.
E eis que, na falta de um projeto, decide-se que o novo pai dos pobres deve esculhambar a classe média. Talvez inspirado pelo colega lunático Nestor Kirschner, o argentino que governa por meio de bravatas e disparates, xingando credores e comandando boicotes, Lula achou graça no que algum assessor deve ter-lhe soprado: a Shell só aumenta preço de combustível na Argentina porque tem otário que pague ("remember" Ciro Gomes); os juros do cheque especial e do cartão de crédito só não caem no Brasil porque esses assalariados almofadinhas têm preguiça de procurar opções mais em conta.
Lula achou graça na idéia de passar um pito professoral na população, e o azar dos brasileiros foi não ter havido tempo para algum outro assessor explicar ao presidente que ele estava prestes a dizer uma grande bobagem. Lula estufou o peito e caprichou na gomalina para exortar os brasileiros a estimularem a concorrência entre os bancos. Se sua platéia não fosse apenas de burocratas adestrados, certamente algum cacique Juruna teria levantado o dedo para perguntar-lhe: que concorrência, cara pálida?
Que Lula, o governo e o PT não tenham um projeto para enfrentar os abusos dos bancos, até se pode compreender – considerando-se que não havia projeto nem para controlar as matrículas da Bolsa Escola. Mas que ninguém tenha tido a idéia de pousar na mesa do presidente uma listinha com as taxas de juros praticadas pelos bancos no mercado brasileiro, aí já é motivo para alguns arrepios. O brasileiro que levantar o traseiro para revoltar-se contra os juros de 8% ao mês e procurar outro banco, terá a sensação de que está andando em círculos – porque os juros que encontrará serão sempre quase irmãos gêmeos daqueles que deixou para trás.
Não será surpresa se este brasileiro, quando voltar frustrado à sua cadeira no bar, tiver vontade de mandar o presidente Lula baixar o seu traseiro na cadeira e trabalhar um pouco.
no mínimo
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, abril 27, 2005
Guilherme Fiuza:A culpa é do traseiro
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