Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 22, 2005

Ricardo A. Setti : Só concurso público mata o nepotismo



22.04.2005 |  Apesar do estardalhaço havido em torno da aprovação, pela principal comissão da Câmara dos Deputados, de seis medidas proibindo a contratação sem concurso de parentes de autoridades para o serviço público, é preciso desde já deixar claro para os leitores algo fundamental: a coisa não vai funcionar.

Claro que foi um passo positivo que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, pela unanimidade dos 36 deputados presentes, tivesse resolvido aprovar as seis diferentes propostas de emenda à Constituição (PECs) vedando o nepotismo que vinham tramitando na Casa – uma delas, há nove longos anos. Essas propostas ainda terão um longo percurso até se tornarem parte da lei maior do país.

O primeiro passo, conforme sugestão aprovada pelo relator na CCJ, deputado Sérgio Miranda (PC do B-MG), consistirá em fundir as seis em uma só, o que será feito pelo relator da matéria em uma comissão especial a ser instalada pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE). Se aprovada ali, ainda irá ao plenário da Câmara, onde precisará de três quintos dos votos de todos os deputados – ou seja, 308 entre 513 deputados –, em dois turnos de votação.

Ultrapassado esse obstáculo adicional, a emenda terá que passar pelo crivo do Senado e pelos votos também de três quintos dos senadores (49), igualmente em dois turnos. Caso o Senado altere qualquer tópico da emenda que recebeu da Câmara, o pacote inteiro retorna obrigatoriamente à apreciação dos deputados, para nova votação em dois turnos. Para um poder da República, como o Congresso, tão contaminado pelo emprego da parentela – 70% dos senadores contrataram irmãos, filhos, sobrinhos, primos, cunhados e outros parentes, revelou recente levantamento do jornal "O Estado de S. Paulo" –, uma proeza e tanto.

Não é, porém, a trajetória difícil da emenda o problema de que se quer tratar aqui: o ponto é que, mesmo sendo bem-intencionada, sinalizando na direção certa e tendo o condão de inibir em algum grau a contratação de parentes para os cargos em que o concurso é dispensado, a nova regra da Constituição será, em boa parte, inócua. Atualmente, sabemos, existe o "nepotismo cruzado", "troca-troca" ou esquema de "triangulação": o deputado X preenche determinada vaga de livre provimento contratando para seu gabinete um parente do deputado Y. O deputado Y, em contrapartida, arranja um emprego do mesmo tipo para o parente do deputado X. O parente do interessado nunca aparece como vinculado a ele próprio.

Não sejamos, porém, injustos com os políticos: isso sucede também entre magistrados, secretários de Estado, ministros, presidentes e diretores de autarquias, de empresas de economia mista – e por aí vai. Abrange, portanto, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário (excetuado o Supremo Tribunal Federal e alguns outros tribunais, cujos regimentos internos proíbem a contratação sem concurso público de parentes até o terceiro grau de qualquer de seus integrantes). Ocorre em nível federal, estadual e municipal.

Aprovada a nova emenda, o que é que vai acontecer? Como os poderosos e influentes federais, estaduais e municipais se conhecem e se relacionam, a proibição do nepotismo nos três Poderes tende a morrer na praia porque não haverá a menor dificuldade em se fazer o "nepotismo cruzado" inter-poderes: o deputado X, que integra a base de apoio do governo no Congresso, dá um jeito de contratar o parente do ministro (ou secretário-geral do Ministério, ou diretor de um banco federal) Y. Este, por sua vez, devolve o favor alojando em algum posto no território de sua influência o apaniguado do deputado X.

Do mesmo modo, o esquema será com absoluta certeza adotado por vereadores com secretários e prefeitos municipais e vice-versa, membros dos governos estaduais com magistrados etc. Pode demorar a acontecer, pode parecer que a nova emenda deu um jeito nessa chaga moral e nesse sangradouro de dinheiro público, mas é inevitável que, de alguma forma, retornemos ao ponto em que estamos agora.

O "x" da questão não é atacar o nepotismo, mas profissionalizar ao máximo a administração pública. Tornar o concurso público universal. Espremer até a quase inexistência os "cargos de livre provimento", "de livre nomeação", "em comissão", "de confiança" ou que nomes mais tenha essa praga patrimonialista que corrompe o Estado, rói as finanças públicas, desmoraliza as instituições, desestimula o funcionalismo profissional e torna os governos ineficientes, caros e... cínicos.

A quem acha exageradas essas afirmações basta dar uma olhadinha nos números – e graças a Deus o IBGE acaba de divulgar um levantamento, a chamada Pesquisa de Informações Básicas Municipais, dando conta da dimensão do que é essa verdadeira tragédia nacional no âmbito das cidades. Em apenas três anos, entre 1999 e 2002, o cidadão brasileiro, indefeso e perplexo, viu crescer o número de funcionários públicos municipais no país de 3,44 milhões para 4,06 milhões de pessoas. Ou seja, o funcionalismo municipal, nesse período, engordou 18%, enquanto o crescimento da população foi de 1,49%. Em outras palavras: a massa de funcionários aumentou doze vezes mais, proporcionalmente, do que a população a que ela supostamente serve! Sim, doze vezes.

E aí vem a praga do "cargo em comissão": nas Câmaras de Vereadores, do total de 131 mil funcionários existentes em todo o Brasil, nada menos que espantosos, absurdos 88 mil – dois terços do total – não eram concursados. Gente, enfim, que entrou pela janela. No total que abrange servidores das Câmaras e das prefeituras, os empregados sem concurso, que eram 13,5% em 1999, pularam para 19,4% em 2002 – um aumento francamente escandaloso de 43,7%.

A situação é menos obscena, mas também preocupante, em outras áreas. Na União, das 15 mil pessoas que trabalham na Câmara dos Deputados – inclusive aquelas contratadas para atender a deputados com a chamada verba de gabinete, sem nenhuma ligação com o serviço público – apenas 3 mil são funcionários de carreira. No Executivo, o governo Lula admitiu em seus primeiros dois anos mais gente sem concurso (25,3 mil servidores) do que pela norma moralizadora e profissional (23,9 mil). Nos governos estaduais, nas Assembléias Legislativas e nos Judiciários dos Estados, com raríssimas exceções, o quadro não é diferente.

O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) tentou apertar os torniquetes da moralização do serviço público – federal, estadual e municipal – conseguindo aprovar no Congresso a emenda constitucional nº 19, de junho de 1998, que, entre outras coisas, tornou o concurso público a norma, pelo texto do inciso II do artigo 37 da Carta: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei (...)".

Que maravilha se o texto tivesse parado aí. O problema é que o inciso tem uma brasileiríssima ressalva: "(...) ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração". E as leis federais, estaduais e municipais foram e continuam sendo generosas em criar cargos "de livre nomeação".

O pretexto é sempre o mesmo: o cargo tal é, na denominação corriqueira, "de confiança" (não confundir com as tecnicamente denominadas "funções de confiança", que, segundo a própria emenda 19, são "exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo"). Daí para nomear o parente é um passo. Como diria o deputado Severino Cavalcanti, sólido empregador de sete pessoas da família na Câmara, fora o filho que o presidente Lula nomeou para um posto no Ministério da Agricultura: quem de maior grau de confiança que um parente?

No entanto, a argumentação do cargo ser "de confiança" é um embuste, uma empulhação. A confiança, no seio da administração pública, não pode ser vista como um valor pessoal. Um vínculo extra-trabalho entre um agente público e uma pessoa física não confere a esta qualquer qualificação para atender o contribuinte – muitas vezes, como sabemos, ocorre o exato oposto. "Confiança" nesse caso tem que ser vista como um atributo republicano: "confia-se" em alguém – que deveria, obrigatoriamente, ser um servidor de carreira – por seu preparo técnico, aferido por concurso público e aperfeiçoado em cursos de treinamento, por sua ficha pessoal limpa, por sua capacidade e disposição de servir ao Estado e aos cidadãos.

Os cargos "de confiança", no melhor dos mundos, deveriam ser raríssimos, se possível restritos aos de ministros, secretários de Estados, presidente ou dirigente principal de um ou outro organismo, como o Banco Central, e poucos mais, tudo explicitado na Constituição. Para eliminar o nepotismo, aperfeiçoar o serviço público, estimular os servidores e melhor atender aos cidadãos, seria necessário que todos os demais postos fossem preenchidos por concurso público. Por que um ministro recém-chegado ao poder em Brasília precisa trazer de São Paulo, Recife ou Belo Horizonte uma pessoa "de confiança" para ser seu chefe de gabinete ou secretário-geral do Ministério?

Tais funções, não por acaso entre as melhores e mais bem remuneradas do funcionalismo, deveriam invariavelmente ser ocupadas por servidores de carreira. Da mesma maneira, as assessorias técnicas e jurídicas, as "assessorias especiais", os cargos de direção em bancos estatais, as direções de autarquias – e por aí vai.

O argumento de que o Estado não está preparado para isso e precisa arrecadar gente "de fora" é uma forma de empurrar o problema com a barriga e de continuar a não investir na profissionalização, no aperfeiçoamento e na carreira dos servidores. Se de fato a União, os Estados e os municípios simplesmente não podem funcionar se, de uma hora para outra, forem privados de enriquecer seus quadros com pessoas extra-funcionalismo, sempre seria teoricamente possível mudar a Constituição para fixar a regra de ferro do concurso público, determinar um prazo de transição razoável para que a norma entrasse em vigor e, até lá, investir em centros de formação para que, passados alguns anos, o país pudesse contar com uma burocracia estável, profissional e competente em todos os níveis.

O que falta – para este governo, como para os anteriores – é justamente aquilo que merece destaque especial em quase todos os discursos do presidente Lula: "vontade política". No caso, para contrariar os brutais e fortíssimos interesses de quem deita e rola com a atual situação. Antigamente se dizia que Lula fora eleito para fazer esse tipo de coisa. Mas hoje...

No Mínimo

Nenhum comentário:

Arquivo do blog