Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 09, 2008

Sangue Negro, com Daniel Day-Lewis

Um novo clásssico

Com o poderoso Sangue Negro, Paul Thomas
Anderson deixa de ser um diretor talentoso: ele
agora já é um dos grandes do cinema americano


Isabela Boscov


Divulgação
Day-Lewis, como o magnata do petróleo Daniel Plainview: uma encarnação ao mesmo tempo eletrizante e violenta do espírito americano

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Trailer do filme

É 1898, e Daniel Plainview, trabalhando sozinho no poço estreito e profundo de sua pequena mina de prata, escorrega num degrau da escadaria tosca, despenca até o chão, quebra uma perna – e, antes de começar o que será uma longa e penosa ascensão até a superfície, pára para admirar as pepitas que conseguiu desencavar. Plainview vai ainda se arrastar da boca da mina até o escritório poeirento onde venderá sua prata. Enquanto ela é pesada, ele pode ser visto, deitado no chão, com a perna esticada em uma tala rústica e um sorriso beatífico no rosto. Com essa abertura estranha, que sublinha com a música dissonante e extraordinariamente perturbadora composta por Jonny Greenwood, guitarrista da banda Radiohead, o diretor Paul Thomas Anderson estabelece o tema dominante de Sangue Negro (There Will Be Blood, Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país: durante toda a sua trajetória, de garimpeiro paupérrimo a magnata do petróleo, Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) nunca deixará de brigar, corpo a corpo, com um solo que reluta até em deixar crescer um ou outro arbusto retorcido. Tudo o que ele guarda de valioso está em suas entranhas, e tem de ser arrancado de lá pela força da vontade. É uma vida brutal, que molda homens também eles brutais – como Plainview.

Sangue Negro é baseado no romance Oil!, publicado em 1927 por Upton Sinclair. Mas o que Paul Thomas Anderson faz, em sua adaptação muito livre, é engrandecê-lo: o que era uma história da conquista da segunda fronteira do Oeste – a de seu subsolo – passa a ser um épico de dimensão espiritual. Ou, na verdade, de uma dimensão que, na alma americana, é ainda mais forte: o empreendedorismo. Quatro anos depois daquele início, Plainview pode ser encontrado à beira de um poço de petróleo rudimentar, com seus empregados. Um deles beija o seu bebê, desce e morre empalado por uma estaca solta. Plainview adota o menino por afeição (a qual, à semelhança do solo com que trabalha, ele esconde nos seus estratos mais profundos), e também porque uma criança pode ser um trunfo para um negociante. Na etapa seguinte, situada em 1911, Plainview vai comprar uma porção significativa da Califórnia de rancheiros que não conseguem plantar nada, mas estão sentados sobre um oceano de petróleo. Sempre com o menino ao seu lado – o qual chama de H.W., como se este já fosse um pequeno magnata –, ele se apresenta como "um homem de família", e portanto mais atento ao bem-estar da comunidade do que os outros aventureiros do ramo. Há ali um rapaz, contudo, que compreende que isso não passa de retórica: Eli Sunday (Paul Dano), pregador messiânico e fundador de uma certa Igreja da Terceira Revelação. Insinuante e extremamente ambicioso, Eli vai iniciar com Plainview uma rivalidade mortal, que não visa a definir apenas qual dos dois é o homem mais forte: visa, principalmente, a decidir qual deles tem o meio mais eficaz de controlar outros homens – se a promessa de enriquecimento ou de salvação.


Divulgação
Dano, como o pastor: o que melhor controla um rebanho, a riqueza ou a salvação?
Upton Sinclair era um socialista e um romântico; Paul Thomas Anderson tem oito décadas de história de vantagem sobre ele, e nada do idealismo do escritor sobreviveu em seu filme. Ele é, ao contrário, apocalíptico na maneira como retrata as duas forças motrizes do desenvolvimento dos Estados Unidos – a riqueza e a religião –, e na forma como identifica nelas apenas manifestações diversas de uma mesma obsessão por domínio, controle e conquista. Filmado em planos longos, de vistas imensas, Sangue Negro reproduz em toda a sua potência a mitologia do Oeste modelada nos faroestes de John Ford. Mas é como se ela fosse vista aqui pela lente de Stanley Kubrick, em que a simetria e o formalismo anunciam não a ordem, mas o caos latente sob ela. Como em toda a ficção e o folclore americanos, porém, são os indivíduos que encarnam as grandes forças. O diretor desenha, assim, o pano de fundo, mas entrega aos seus atores a tarefa de se pôr em primeiro plano e concentrar a ação – e Day-Lewis e Dano se enfrentam e se sobrepujam cena após cena, dobrando um ao outro em combates de uma violência moral e física que ao mesmo tempo choca e eletriza. Dessa combinação entre a intensidade de seus atores e a maestria com que evoca o mundo que eles habitam, Anderson tira algo poderoso: o equivalente cinematográfico do "grande romance americano", como, na tradição literária, são chamadas as obras capazes de encapsular de maneira definitiva os estados de alma do país. Desde Boogie Nights e Magnólia, Anderson se revelara um cineasta de talento incomum. Agora, aos 37 anos, ele acaba de se tornar algo maior – um clássico

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