Na abertura da sessão legislativa deste ano, o presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho, fez impressionante discurso. Sua crítica ao exagero no uso das medidas provisórias mereceu encômios de importante editorial (Estado, 8/2/2008).
Impecável também foi sua posição sobre o Orçamento. "Com a estabilidade econômica, é perfeitamente possível termos um Orçamento mais impositivo, de forma que o Congresso, cuja origem na vida das nações civilizadas decorreu da necessidade do controle dos tributos e dos gastos públicos, volte a assumir o verdadeiro papel que é seu." No fundo, o senador disse que o Orçamento padece de atraso institucional inaceitável.
Palavras sábias. Esse atraso é uma das razões por que o Brasil ficou para trás em relação aos países anglo-saxônicos no progresso derivado do sistema capitalista.
No princípio do século 17, Portugal e Espanha eram potências econômicas. A Inglaterra não o era, pois não estava na rota do comércio de especiarias nem possuía colônias nas quais pudesse produzir açúcar - a commodity mais valorizada da época - ou extrair ouro e prata. Essas eram as fontes de geração de riqueza daqueles tempos.
A virada começou com a Revolução Gloriosa (1688), que gerou muitos avanços institucionais. O Judiciário adquiriu independência. Várias leis definiram direitos de propriedade. Daí surgiram duas outras revoluções: uma fiscal e outra de crédito, sem as quais não teria acontecido uma terceira, a Revolução Industrial. O resto se sabe.
O Orçamento passou a ser a principal decisão anual do Parlamento. Até hoje, o ministro da Fazenda (Chancellor of the Exchequer) caminha a pé, seguido de repórteres, da residência oficial em Downing Street até a Parliament Square para entregar a proposta orçamentária. Seguem-se intensos debates na mídia.
No mundo ibérico, o Orçamento e o patrimônio do rei se confundiam. No Brasil, até os anos 1930, as emendas parlamentares cuidavam de nomeação e promoção de funcionários, davam nomes de ruas e por aí afora. Eram as "caudas orçamentárias", que originaram emenda constitucional segundo a qual o Orçamento não conterá matéria estranha à receita e à despesa. Esse dispositivo acaciano ainda existe no art. 165, § 8º da atual Constituição.
No período democrático 1946-1964, o Orçamento era desfigurado pelo Congresso. Por isso, o regime militar vedou as emendas parlamentares. A Constituição de 1988 as restabeleceu sob regras que impediriam a volta ao passado (art. 166, § 3º), mas, ao permitir emendas para corrigir "erros e omissões", terminou gerando uma válvula de escape para aumentar despesas. Os parlamentares usam a norma para "reestimar" a receita.
A reação a tudo isso tem sido uma interpretação esperta do Executivo: o Orçamento é "autorizativo". Assim, além das despesas obrigatórias por lei, o Tesouro libera apenas o que quiser. Sucessivas administrações federais absorveram a interpretação como se fosse norma legal (o que não é). Assim, o Congresso fixaria teto para as despesas, permitindo ao governo federal gastar menos.
Nenhum país que leve a sério o Orçamento adota essa interpretação. Se fosse assim, o Executivo poderia mudar prioridades estabelecidas na lei anual mais importante. Por exemplo, se o Congresso aprovasse uma dotação para determinado investimento, o Tesouro poderia desprezar a norma simplesmente não liberando os correspondentes recursos
A idéia de que o Orçamento é "autorizativo" se tornou amplamente aceita, inclusive pelos próprios parlamentares, o que é incrível. O mesmo parágrafo 8º do artigo 165 usa dois verbos: "fixar" para a despesa e "estimar" para a receita, o que desautoriza a interpretação.
O Orçamento deve ser impositivo, mas a implementação dessa regra exigiria o estabelecimento de novos mecanismos institucionais. O Congresso deveria ter incentivos ao comportamento adequado na matéria. Seria possível fazer ajustes rápidos quando mudassem os parâmetros considerados na lei orçamentária, como uma frustração de receitas. A arrecadação deveria ser estimada em conjunto pelas áreas técnicas do Executivo e do Legislativo.
Espera-se que a proposta do senador não tenha sido mero exercício de retórica. Se ela vier a ser considerada, debatida e adotada, a democracia, a gestão pública e a economia ganharão muito.
*Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br
Impecável também foi sua posição sobre o Orçamento. "Com a estabilidade econômica, é perfeitamente possível termos um Orçamento mais impositivo, de forma que o Congresso, cuja origem na vida das nações civilizadas decorreu da necessidade do controle dos tributos e dos gastos públicos, volte a assumir o verdadeiro papel que é seu." No fundo, o senador disse que o Orçamento padece de atraso institucional inaceitável.
Palavras sábias. Esse atraso é uma das razões por que o Brasil ficou para trás em relação aos países anglo-saxônicos no progresso derivado do sistema capitalista.
No princípio do século 17, Portugal e Espanha eram potências econômicas. A Inglaterra não o era, pois não estava na rota do comércio de especiarias nem possuía colônias nas quais pudesse produzir açúcar - a commodity mais valorizada da época - ou extrair ouro e prata. Essas eram as fontes de geração de riqueza daqueles tempos.
A virada começou com a Revolução Gloriosa (1688), que gerou muitos avanços institucionais. O Judiciário adquiriu independência. Várias leis definiram direitos de propriedade. Daí surgiram duas outras revoluções: uma fiscal e outra de crédito, sem as quais não teria acontecido uma terceira, a Revolução Industrial. O resto se sabe.
O Orçamento passou a ser a principal decisão anual do Parlamento. Até hoje, o ministro da Fazenda (Chancellor of the Exchequer) caminha a pé, seguido de repórteres, da residência oficial em Downing Street até a Parliament Square para entregar a proposta orçamentária. Seguem-se intensos debates na mídia.
No mundo ibérico, o Orçamento e o patrimônio do rei se confundiam. No Brasil, até os anos 1930, as emendas parlamentares cuidavam de nomeação e promoção de funcionários, davam nomes de ruas e por aí afora. Eram as "caudas orçamentárias", que originaram emenda constitucional segundo a qual o Orçamento não conterá matéria estranha à receita e à despesa. Esse dispositivo acaciano ainda existe no art. 165, § 8º da atual Constituição.
No período democrático 1946-1964, o Orçamento era desfigurado pelo Congresso. Por isso, o regime militar vedou as emendas parlamentares. A Constituição de 1988 as restabeleceu sob regras que impediriam a volta ao passado (art. 166, § 3º), mas, ao permitir emendas para corrigir "erros e omissões", terminou gerando uma válvula de escape para aumentar despesas. Os parlamentares usam a norma para "reestimar" a receita.
A reação a tudo isso tem sido uma interpretação esperta do Executivo: o Orçamento é "autorizativo". Assim, além das despesas obrigatórias por lei, o Tesouro libera apenas o que quiser. Sucessivas administrações federais absorveram a interpretação como se fosse norma legal (o que não é). Assim, o Congresso fixaria teto para as despesas, permitindo ao governo federal gastar menos.
Nenhum país que leve a sério o Orçamento adota essa interpretação. Se fosse assim, o Executivo poderia mudar prioridades estabelecidas na lei anual mais importante. Por exemplo, se o Congresso aprovasse uma dotação para determinado investimento, o Tesouro poderia desprezar a norma simplesmente não liberando os correspondentes recursos
A idéia de que o Orçamento é "autorizativo" se tornou amplamente aceita, inclusive pelos próprios parlamentares, o que é incrível. O mesmo parágrafo 8º do artigo 165 usa dois verbos: "fixar" para a despesa e "estimar" para a receita, o que desautoriza a interpretação.
O Orçamento deve ser impositivo, mas a implementação dessa regra exigiria o estabelecimento de novos mecanismos institucionais. O Congresso deveria ter incentivos ao comportamento adequado na matéria. Seria possível fazer ajustes rápidos quando mudassem os parâmetros considerados na lei orçamentária, como uma frustração de receitas. A arrecadação deveria ser estimada em conjunto pelas áreas técnicas do Executivo e do Legislativo.
Espera-se que a proposta do senador não tenha sido mero exercício de retórica. Se ela vier a ser considerada, debatida e adotada, a democracia, a gestão pública e a economia ganharão muito.
*Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br