O visionário e a executiva
Os estilos de Obama e Hillary correspondem a pontos
de vista diversos sobre a natureza da Presidência
Se inspiração é uma palavra cujo uso no Brasil costuma dizer respeito apenas ao ofício dos poetas (para horror de um dos maiores, João Cabral de Melo Neto) e dos artistas em geral, nos Estados Unidos ela circula também na política – e tem a ver não só com a atual disputa entre Hillary Clinton e Barack Obama pela candidatura do Partido Democrata como com um modo de encarar a Presidência do país. É moeda corrente, entre os americanos, dizer que tal político é ou não é "inspiring". "Inspirador’, a tradução literal de "inspiring", soa feio em português. Poderíamos traduzir a palavra inglesa por "mobilizador" e nos sentiríamos mais à vontade em nosso idioma, mas estaria faltando alguma coisa. "Mobilizador" não faz jus à acepção mais abstrata, mais espiritual, digamos, a que "inspiring" conduz. Um líder que inspira é aquele que tem uma visão dos rumos da história capaz de contaminar os liderados. Veja-se bem: da "história", não da mera política. Quem quiser compará-lo a um profeta pode. A comparação é um pouco exagerada, mas não muito.
Num número recente da revista New Yorker, o jornalista George Packer chamou atenção para o "inspiration gap", o déficit de inspiração de que se ressentiria Hillary Clinton. Em contrapartida, Barack Obama deveria seu surpreendente sucesso à capacidade de inspirar. Na opinião do jornalista, essa é uma linha divisória que, na ausência de maiores diferenças programáticas, caracteriza mais fundamentalmente os dois candidatos do que o fato de um ser homem e a outra mulher, um negro e a outra branca, um novato na política e a outra uma veterana. Obama se destaca pela alta retórica, com ênfase na mudança, na esperança e na união entre os americanos, e pela tendência a capturar antes o coração do que o cérebro do ouvinte. Hillary é do tipo que não perde de vista o mundo real, gosta de exibir seu domínio dos detalhes e dirige-se com prioridade ao lado racional do eleitor. Obama, segundo o articulista da New Yorker, se oferece como "o catalisador por meio do qual os desencantados americanos superarão duas décadas de divisiva politicalha, energizarão sua democracia e restaurarão a fé no governo". Hillary acredita na política "como arte do possível, com as mudanças vindo gradualmente por meio da boa governança".
Tornou-se comum na imprensa americana dizer que a distância entre Obama e Hillary é a mesma entre a poesia e a prosa. Bill Clinton já se aproveitou do mote para diminuir Obama. "Você pode fazer campanha em poesia, mas governa em prosa", disse. Hillary, num debate com Obama, provocou polêmica ao afirmar que o sonho de Martin Luther King só se tornou realidade por causa da habilidade do presidente Lyndon Johnson em fazer passar pelo Congresso a legislação dos direitos civis. A observação foi vista como uma afronta à memória de Luther King e mesmo como uma estocada racista contra a luta do famoso líder negro. George Packer a vê apenas como sintomática da crença de Hillary de que os sonhos não valem nada se não são acompanhados de medidas legislativas bem elaboradas e prosaico trabalho de convencimento junto ao Congresso.
O fato de incomodar os Clinton é evidência de que o estilo Obama pegou. Ele é um dos dois principais responsáveis pelo entusiasmo com que se desenvolvem as prévias partidárias neste ano. O outro é George W. Bush, cuja incompetência e má-fé impulsionam o eleitorado na direção de ser mais vigilante e participativo. Não surpreendentemente, para quem se apresenta como um quase-profeta, Obama é o candidato preferido dos jovens e dos que só esporadicamente se interessam pela política.
Tanto quanto suas personalidades, ou a persona política que encarnam, o estilo dos dois candidatos reflete duas visões da Presidência. É a visão da Presidência como locus por excelência dos visionários condutores de povos contra a dos que a vêem talhada antes para pessoas de pés no chão e talento de executivo. Eis uma discussão boa para ser travada em qualquer país, e que nunca se resolverá. O que se pode dizer é que há períodos mais favoráveis aos visionários e outros aos executivos. Mais favoráveis aos visionários são aqueles em que se sente baterem mais forte os ventos da história, pedindo guinadas ou esforços coletivos redobrados. O desfecho da disputa entre Obama e Hillary será um sinal de quão histórico, e portanto carente de decisões enérgicas, os eleitores do Partido Democrata percebem o presente momento no país. Se Obama ganha de Hillary, igual sinal advirá do resultado de sua disputa com o candidato republicano.
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De volta à terra… não só aquela em que se apóiam os pés, mas também a que nos serve de pátria, eis o que diz um conceituado cronista: "O ano para o Rio de Janeiro começa na quaresma. O ano do trabalho, é preciso dizer. Até essa época não se faz verdadeiramente senão esperar pelo Carnaval". Não, não se assuste o leitor. Não se trata do Brasil de hoje. O trecho é de uma crônica de Raul Pompéia de 16 de fevereiro de 1891. Ufa, que alívio.
Entrevista:O Estado inteligente
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