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Ao sair do salão, percebi a dura verdade do "amanhã não tem mais"
Não sei como você se sente hoje. Sei que muitos carnavalescos não conseguem nem “abrir o jornal” nesta manhã que, para eles, lembra um fim de filme e de jogo de futebol.
De minha parte, eu quase não consigo abrir os olhos ou balançar a cabeça, pois estou numa ressaca maior do que a dos olhos de Capitu. Dentro do meu cérebro reduzido a uma bola de chumbo transitam, como num velho VHS, as imagens cheias de traços do baile “É hoje só, amanhã não tem mais”, ao qual compareci nesta “terçafeira gorda”, fantasiado de “antropólogoescritor” e com a devida bênção de Celeste, que, generosamente, abriu mão de sua companhia para que eu pudesse realizar em liberdade e sem preocupações meus estudos do carnaval.
O fato é que estou, como todo mundo que toma um pileque, pensando ao contrário. Tanto que não sei como fui capaz de escrever e enviar esta crônica antes do famoso, eletrizante e definitivo “fechamento” do jornal, depois de observar com intensidade o baile que um amigo-discípulo me conduziu, e que era bem a imagem real desse tempo de licença no qual se pode fantasiosamente “fazer tudo”. Claro que fui devidamente disfarçado de antropólogo social, esse papel cuja marca é observar-participando e participar-observando.
Tal como acontece em todos os pósferiados, quando se faz um balanço quase sempre doloroso do que dissemos e fizemos (ou tentamos fazer) na festa, o papel de antropólogo contém essa dobra contraditória que obriga à divisão.
Não vou fazer uma descrição detalhada da festa, exceto para dizer que chegamos cedo, caderno de notas em punho, máquinas digitais e gravadores aprumados e de pilhas novas, óculos imaculadamente limpos. Minha fantasia consistia num casaco estilo safári, calça cáqui, camiseta branca e, na cabeça, botei o clássico capacete estilo colonial.
Uma pequena máscara preta adicionava o toque carnavalesco necessário para indicar que estava fantasiado, ao mesmo tempo que me tornava irreconhecível, dando-me a proteção necessária para visitar todos os recantos do baile. Chegamos cedo, percorremos o salão ainda deserto, vimos a disposição oval dos chamados camarotes e ouvimos os primeiros acordes da orquestra que, afinadíssima, atacou de “Mamãe eu quero”, incendiando os foliões. Observei que quem estava chegando era tomado pelo clima e logo entrava na roda que começava a circular, pulando, no salão.
Vimos, na nossa deambulação preliminar, algumas celebridades das artes e do poder que graciosamente cumprimentavam-se , reconhecendo-se mutuamente; naquela satisfação de ser conhecido que é talvez a motivação e o objetivo de toda a fama. Notamos também como o baile de carnaval neutralizava os avessos da vida diária unindo políticos rotineiramente inimigos e milionários jovens com velhos aristocratas em cujas mesas brilhavam taças do melhor champanhe.
Ficamos de pé, ao lado de um camarote repleto de turistas. A posição era privilegiada porque permitia abarcar com o olhar e, eventualmente, com a máquina fotográfica, todo o salão que era enorme. As fantasias das mulheres deslumbravam pelo paradoxo: elas estavam vestidas da sua própria nudez, se isso era possível.
Ou seja, cobriam-se com a beleza de seus seios, ventre, coxas, púbis e nádegas perfeitas. Um grupo de garçons trazia largas quantidades de álcool e as moças sulinas, mesmo as mais jovens, pareciam muito simpáticas a nossa empresa intelectual.
Presenciamos todo o ciclo da festa, do seu decolar um tanto tímido, mas arrojado; testemunhando o seu clímax pela alta madrugada, quando os convivas nos camarotes praticavam aquilo que no mundo diário seria lido como algo fora de linha; e analisamos o final do encontro, quando o diretor da festa e uma escolta de policiais militares fardados, porém, risonhos e amáveis, pediam que os foliões mais renitentes deixassem a sala porque, sendo cinco da manhã, já estávamos na quarta-feira de cinzas e na Quaresma.
Foi quando o povo da festa, desafiador, começou a entoar, aos pulos, o refrão que nomeava o próprio baile: É hoje só, amanhã não tem mais! Mesmo na névoa da bebedeira, intuí que aquilo era um grito de resistência.
Herético, invoquei o Guimarães Rosa do “narrar é resistir”, como sempre, pensei, sem nenhuma originalidade: pular carnaval é desafiar esse amanhã que trará o nada de onde viemos.
Cheguei em casa lúcido e sem sono.
Não me lembro quem venceu: se foi o meu lado observador ou minha dimensão participante. Sei que travei uma dura batalha entre o observar que promove distância e frieza; e o entrar na folia que leva ao justo oposto.
Minto que fiquei o tempo todo entre um papel e outro, mantendo assim um alto nível de fiat lux antropológico quando, por assim dizer, pegava como um ágil goleiro a realidade antropológica do carnaval no próprio momento em que se fazia e não por meio de esquemas adrede armados, como sempre fiz no passado.
Foi somente ao sair do salão com destino a minha Niterói, que um amigo de Ipanema chama de Bósnia, e ainda ouvindo os ecos do mantra que o povo continuava cantando, que percebi a dura verdade do “amanhã não tem mais”.
Entrevista:O Estado inteligente
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