Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Política - A histeria descontrolada


Maria Cristina Fernandes
Valor Econômico
15/2/2008

Numa das votações mais importantes e menos publicizadas do final da legislatura passada, os guardiões dos erário nacional e paulista empenharam-se contra uma emenda ao texto da nova lei de licitações e foram derrotados na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Com a emenda, de autoria do senador governista Francisco Dornelles (PP-RJ), impediu-se que nas licitações públicas as propostas e preços sejam conhecidos antes dos nomes dos concorrentes, inversão de fases inibidora de conluios e cuja experiência no resto do mundo tem-se mostrado eficiente no combate à corrupção.

Mal a atual legislatura começou, o bazar das miudezas ganhou publicidade inversamente proporcional e pôs em arenas aguerridamente opostas gestões públicas afinadas. A troca de experiências do chamado governo eletrônico, cujo avanço está em jogo na nova lei de licitações, é desses ganhos da administração pública que tem sobrevivido à guerra entre petistas e tucanos. Em 2007, apenas no governo federal, possibilitou a economia de R$ 3,2 bilhões, o suficiente para pagar 42.666 vezes a fatura dos cartões de crédito corporativos de toda a Esplanada.

Houvesse genuíno interesse em aprimorar o controle do sistema de cartões corporativos, a CPI não teria sido estancada pelo sigilo dos gabinetes presidenciais petista e tucano. Apenas o esvaziamento da arena pública, alimentado pela histeria ética, faz de um botox ou do rótulo de uma garrafa de vinho o objeto de desejo do debate político.

É esse esvaziamento que está no cerne das preocupações de um grupo de pesquisadores do Centro de Referência do Interesse Público da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Ciência Política pelo Iuperj e integrante do grupo, Fernando Filgueiras vê crescer, na esteira dos sucessivos escândalos que têm pautado a agenda nacional, a percepção do contribuinte sobrepondo-se à do cidadão.

Uma visão que, ao perseguir a transparência como finalidade, enfraquece-se em sua capacidade de cobrar responsabilidade e mudança. Que vê no brasileiro um ser naturalmente corrompido e merecedor de toda a nossa desconfiança. Um sujeito que só quer tirar proveito, nem que seja com uma tapioca no cartão.

Um país de desconfiados tende a se despolitizar. Onde grassa a desconfiança o interesse público não prospera como finalidade da política. Na ausência de uma agenda, o país foca cada vez mais nos vícios privados de servidores e menos nas questões que afetam o dia-a-dia da população.

Percepção do contribuinte sobrepõe-se a do cidadão

Se conversas de botequim sobre os escândalos do dia gerassem mobilização, o Cansei teria sido o maior fenômeno de massas da política brasileira contemporânea. Esvaziou porque não se mobiliza pelo fisco, mas pela cidadania.

A mesma opinião pública que Filgueiras avalia ter dificuldades de aceitar a corrupção como parte da política e de seus conflitos de interesse, não se cansa de exaltar a sociedade brasileira e sua elite política como naturalmente corrompida.

Na esfera privada, por outro lado, a era da governança corporativa leva vícios privados a se esvaírem sob a pressão de acionistas. O mercado intolerante à corrupção arrebenta a corda no lado do corrompido. O escândalo dos cartões, incorporados à administração pública como iniciativa inspirada na eficiência do setor privado, acaba referendando o senso comum de que o Estado brasileiro é irremediavelmente corrompido.

A cada ressurgimento da histeria ética, vem de volta a Filgueiras a imagem do cachorro correndo atrás do próprio rabo. Um exemplo é a crescente desconfiança em relação ao Legislativo. O eleitor limita-se a exercer seu protesto pelo voto. É mais difícil um deputado renovar seu mandato no Brasil do que na maior parte das democracias do mundo. Mas se, a cada legislatura, renovam-se os vícios da leva que se foi é porque a indignação provocada pela histeria ética permite ao eleitor discernir aquilo que rejeita na política, mas não geram valores nem cultura cívica para a escolha de um representante. No caldeirão de defensores de uma moralidade pública estéril interesses espúrios misturam-se ao oportunismo e à ingenuidade que se move pela biruta de aeroporto.

Mudanças institucionais que buscam mais moralidade na administração pública só são eficazes se conectadas à capacidade dos cidadãos de perceberem o conflito de interesses da política e julgarem seus governos pela resposta às suas demandas legais, reais e que importam.

O real motivo para os governos do PT e do PSDB estarem ensurdecidos pela histeria ética é o fato de que os partidos que criaram iniciativas republicanas como o orçamento participativo e o governo eletrônico, terem, ao longo desses 13 anos em que se revezaram no poder, indignado contribuintes e desmobilizado cidadãos.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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