Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 10, 2008

Nonada? Pedro S. Malan

Sabe o leitor quantas vezes a palavra “direitos” aparece em nossa Constituição? Pois bem, uma rápida consulta indica o total: nada menos que 74 vezes. E a palavra “deveres”, caro leitor ou leitora? Apenas cinco vezes, o mesmo número que a expressão “dever do Estado”. Esta relação tão díspar entre direitos e deveres talvez diga algo sobre nós mesmos, sobre a sociedade que construímos “neste país”. Em particular sobre o excesso de expectativas acerca da ação do Estado no processo de assegurar direitos e assumir responsabilidades, deveres e obrigações para com a sociedade e os indivíduos que a constituem.

Começo este artigo com essa observação por duas razões. A primeira tem que ver com esta farra no uso dos cartões de crédito corporativos por muitos dentre os milhares de servidores públicos que, certamente, se consideram no exercício de um direito: afinal, um cartão lhes foi confiado para os gastos que considerassem “necessários” ao exercício de suas funções ou ao funcionamento dos órgãos a que pertencem. Que houve abuso flagrante é evidente, como demonstrou a imprensa - e não os órgãos do governo encarregados de fiscalizar esses usos e de coibir exemplarmente os abusos. “Excesso de transparência é burrice”, como dizia Delúbio, e “transparência pode comprometer a segurança”, como diz o general. O fato é que parece estar em curso aquilo que o mestre Guimarães Rosa chamou de “condena de absolvido”. Pequenos desvios e talvez alguns erros menores tenham sido cometidos aqui ou ali, mas nada que comprometesse “o grande salto para a frente” em que estariam empenhados, desde 2003, o governo e seus 37 ministros. O resto seria intriga de uma oposição invejosa. Muito barulho por nada. Coisas de carnaval. Falta do que fazer. Pequenos assassinatos para pequenos delitos. Preocupações “neurótico-obsessivas” com relações espúrias entre os domínios público e privado. Nonada.

A segunda razão do parágrafo inicial deste artigo está ligada ao fato de que, meses atrás, terminei artigo neste espaço com a seguinte observação. “A importância dos próximos três anos - e dos quatro que se lhes seguirão - reside exatamente na oportunidade histórica de nos livrarmos de vez dos mais primitivos falsos dilemas e de reduzirmos a extensão e a profundidade destas ambigüidades não resolvidas, particularmente onde elas se apresentam de forma mais aberta no imaginário e na prática deste governo e de suas bases: o papel do setor público no processo de desenvolvimento econômico e social do País.”

Este não deveria ser um debate ideológico, eivado de academicismos baseados em leituras de experiências históricas de séculos anteriores. Estamos em pleno século 21 e acredito que a maioria das pessoas que já leram ou refletiram sobre o tema (inclusive a maioria dos economistas tidos como liberais) endossaria os exemplos abaixo de atividades necessariamente de responsabilidade do Estado e de transitórios governos: manutenção da lei, da ordem e da segurança pública; representação externa e defesa nacional; administração da justiça; preocupação com a qualidade da legislação sobre educação, saúde e bem-estar da população; regulação da competição entre interesses econômicos conflitantes; e, por último - e, para muitos, não menos importante -, a “promoção do desenvolvimento nacional”.

Mas a expressão “promoção do desenvolvimento nacional”, para resumir ao extremo, deveria ser interpretada como a busca, incessante, por essencialmente três coisas. Primeiro, por aumentar a eficácia e a eficiência das ações operacionais do governo em todas as áreas mencionadas no parágrafo anterior, em particular a busca por maior eficiência nos gastos públicos em consumo e investimento. Segundo, por criar condições mais favoráveis à poupança e, principalmente, ao investimento privado e à elevação da produtividade do trabalho e do capital e da competitividade internacional do País. Terceiro e, felizmente, algo que após quase 14 anos acabou - esperemos - por deitar raízes entre nós, a busca pela preservação da estabilidade macroeconômica como condição absolutamente necessária, ainda que não suficiente, para assegurar o crescimento sustentado e os níveis de relativa previsibilidade de um país que se pretende “normal” e confiável.

Vale notar que as observações acima não têm que ver com ideologias. O historiador britânico Tony Judt, em seu recente e excelente livro sobre a Europa no pós-guerra (Postwar), escreve: “A divisão esquerda-direita ainda faz sentido em termos históricos, que dizem respeito a tradições políticas. Mas faz cada vez menos sentido quando se discutem políticas públicas concretas. O futuro da Europa não se ajusta a estas noções do passado.” O invejável pragmatismo dos chineses procurou expressar o mesmo com a frase famosa de Deng Xiao Ping, o grande arquiteto do extraordinário sucesso do país: “Não importa a cor do gato desde que cace ratos.” Com eficiência.

Sabe o leitor quantas vezes a palavra “eficiência” aparece em nossa Constituição de 1988? Duas vezes. E a palavra “produtividade”? Uma vez. Como os 74 direitos e os cinco deveres, talvez isso diga algo sobre nós mesmos e a sociedade que estamos construindo. Mas não posso deixar de registrar um avanço. A contagem acima foi feita teclando Ctrl L no texto da Constituição original. A versão atual, com todas as emendas desde então, registra três vezes a palavra “eficiência” e quatro vezes a palavra “produtividade”.

Não é preciso que este número de registros aumente na Constituição. Mas seria extraordinário para o desenvolvimento econômico, social, tecnológico, político e cultural do País se os debates públicos ao longo de 2008, 2009 e 2010 pudessem incorporar, definitivamente, o significado substantivo das palavras “eficiência” e “produtividade”, ao lado dos tradicionais e importantes objetivos de ampliação dos espaços para a liberdade individual e a justiça social.

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