Sinopse
O novo filme dos irmãos Coen, No Country for Old Men, traduzido bizarramente para Onde os Fracos não Têm Vez (o título original do livro de Cormac McCarthy é tirado de um poema de Yeats, uma exaltação do amor juvenil que nada tem a ver com o romance), é daquele tipo que os críticos adoram dizer que é sobre a "crise de valores da América". O filme não é particularmente sobre os EUA. E, por esse mesmo critério, quem disse que Faulkner e Hemingway - os escritores que são referência central em McCarthy - já não tratavam da "crise de valores da América"? Há muito tempo os grandes artistas mostram o vazio sob a violência machista das pradarias texanas, ou riem do "sonho americano". O filme vai além do naturalismo moralista do cinema convencional e põe em pauta a questão universal da agressividade como norma.
Anton Chigurh (Javier Bardem)é um "fantasma", como se fosse a encarnação do mal que há em praticamente todos os habitantes daquele mundo. O incômodo que causa é menos pela brutalidade que distribui do que pelo fato de ela não ser exclusivamente sua. Daí a metáfora do tubo de gás comprimido que ele utiliza como uma arma altamente eficiente: sua diferença está no método, não na moral. Seu principal oponente, Llewelyn Moss (Josh Brolin), é muito parecido com ele - daí o paralelismo entre sua meticulosa operação para esconder o dinheiro e a frieza com que Chigurh cuida de seus próprios ferimentos -, mas não consegue ser tão impassível. E termina vítima de sua própria consciência culpada, aquela que Hamlet já dizia que nos faz a todos covardes.
Bardem faz um incrível semblante de psicopata, temperado pelo ridículo do penteado, e constrói assim não um personagem, mas um arquétipo. Toda a primeira parte do filme, como na "Terra" de Euclides da Cunha, é uma descrição extremamente bem editada dos descampados inóspitos da região aonde ele chega como um anticristo. O que há de pretensioso em McCarthy se torna uma arte de imagens tensas, sempre divididas pelo horizonte, e há tantos achados visuais no filme que nem os memorizamos. O xerife Bell não é nem quer ser o salvador; é um profissional e como tal persegue Chigurh e Moss, mas é quase outro espectador da história. Tommy Lee Jones, com o olhar exasperado e o físico combalido, dá a melhor atuação, porque a mais sutil.
Pena que o filme apressa demais o ritmo na parte final, justamente quando as fraquezas vêm à tona. Não é tão bom quanto Fargo, cujos personagens são mais complexos. Mas pelo menos é adulto. Há algumas conversas de Bell com outros policiais sobre como "antigamente não era assim", e o filme não cai na facilidade de referendar essa nostalgia, de dizer que no passado havia mais cavalheirismo e princípios. Chigurh, por sinal, é o único fiel a seus princípios... Desmascara os outros em suas mentiras, principalmente nas mentiras para si mesmos, forçando-os a escolher entre duas alternativas - e a única pessoa que se recusa a optar é uma mulher. Naquele território a insensibilidade sempre imperou, e o resultado é que hoje até adolescentes estão prontos a ser corrompidos por um punhado de dólares. Chigurh é apenas a versão em alta pressão da desumanidade vigente. É a pulsão de morte que só precisa de uma brecha social para se disseminar.
RODAPÉ (1)
Não é morbidez ler com prazer O Livro das Vidas (Companhia das Letras), a antologia dos obituários do New York Times organizada por Matinas Suzuki Jr. Talvez seja exagerado chamar esses artigos muito bem escritos de "literários", afinal não têm descrições detalhadas ou ações seqüenciadas; mas que são jornalismo de alto nível, são, embora no Brasil muita gente ache que só furo de reportagem é jornalismo. Também não é certo dizer que os textos tratam de pessoas desconhecidas. Muito pelo contrário. Ali estão figuras como o jornalista Joseph Mitchell, a geneticista Barbara McClintock, o criador do Super-Homem, etc. Todos haviam sido notícia em vida.
O mais interessante não é ler essas microbiografias, ou meditar sobre o desejo demasiado humano de não morrer como um desconhecido, mas perceber como é importante cultivar as personagens de uma cidade, que nem sempre são artistas geniais ou políticos importantes. O milionário filantropo, o publicitário que marcou uma época com alguma campanha, o garoto doente que foi homenageado pelo grande atleta, a dona de um sebo que formou gerações de autores e leitores, o incorporador que mudou a paisagem dos subúrbios, o poeta viciado que inspirou a geração beatnik, o autor do melhor cheesecake de Nova York - são essas figuras que dão identidade a uma cidade, que criam pontos de referência que não podem ser apagados pela correria cotidiana.
Gosto ainda mais dos obituários da revista The Economist, capazes de resumir as idéias do morto com uma concisão única. Mas nos do New York Times vemos, com defeitos e tudo, como a pessoa era, não só o que ela era; sentimos que para merecer um obituário o melhor a fazer é se concentrar em viver com grandeza. Ainda há espaço para que a sensibilidade triunfe.
RODAPÉ (2)
Se você quer afastar seus filhos da leitura dos clássicos, chame um especialista. O que se leu sobre o padre Antônio Vieira nestes dias de seu quarto centenário é um exemplo - de como reforçar a noção de que livros antigos são chatos. Ler Vieira já é suficientemente difícil para o leitor comum; não é preciso piorar as coisas com academicismos e idéias esdrúxulas como a de que ele era profeta disso ou daquilo ou uma simbiose de místico universal com intérprete do Brasil. Não é verdade também que ele escrevia por metáforas. O que fez dele um dos pilares do idioma - "o imperador da língua portuguesa", na expressão de Fernando Pessoa - era o modo como não permitia que sua retórica descambasse para o mero artifício.
Seu fraseado segue um raciocínio lógico, sim, e sua retórica é conduzida por uma oralidade infalível, um tom de alta conversação que tem a marca "pragmática e polifônica" (como diz o professor português José Monterroso Teixeira no livro Aleijadinho - O Teatro da Fé, editora Metalivros) do barroco jesuítico, tardio e mais contido do que o barroco "stricto sensu". Há um colorido e uma elegância em seus sermões que lhes dão durabilidade literária. Repetições, interpelações, citações, analogias e todas as figuras de linguagem são utilizadas como engenho de persuasão tão racional quanto emocional, feito um fraseado musical estruturado em linhas clássicas.
Ele pode usar termos mais corriqueiros, como "afanando", misturados a citações latinas; pode emendar perguntas e fazer enumerações sem cair em monotonia; pode ser denso sem deixar de dançar. E isso porque um estilo vive de idéias, não de efeitos. Como pensador, Vieira defende um cristianismo estóico; como estilista, é a própria expressão dele. Nada melhor do que ler nesta quaresma seu Sermão de Quarta-feira de Cinza para encontrar ali a filosofia, inspirada em Sêneca, de que os homens devem viver como mortais e imortais, conscientes de que o tempo deve ser aproveitado com moderação e generosidade. Em vez disso, seguimos "tão desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos e tão descuidados da morte, como se fôramos imortais". Você não precisa concordar com Vieira. Só não se prive de admirá-lo.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que supostamente lida com questões que envolvem conhecimento técnico, deu uma declaração sobre o criacionismo que em outros países geraria muito debate. O problema não é que os alunos não devem ser informados sobre as diversas hipóteses de surgimento do planeta. O problema é que eles devem ser informados de que a teoria da Evolução, de Darwin, é a mais consistente para explicar as transformações da natureza. O criacionismo deve ser ensinado como história, não como ciência.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Minha história preferida sobre a folia dos cartões corporativos do governo - skindô-skindô com o dinheiro público - é a da reforma da mesa de sinuca do Ministério das Comunicações. Ela custou, em maio de 2007, nada menos que R$ 1,4 mil... Será que é para tirar a fusão da Brasil Telecom com a Oi da sinuca de bico? Ou para encaçapar a verba da TV Brasil? Bem, o gabinete de Lula gastou R$ 3,6 milhões com esses cartões, e muitos desses gastos também são irregulares. O problema, enfim, não são os cartões; são os usuários. A ministra Dilma Roussef, porém, negou que vivemos numa "republiqueta das bananas". Está certo, ministra. É um país muito grande para ser chamado de "republiqueta".
Aforismos sem juízo
Se morrer fosse bom, os mortos não ficariam tão pálidos.
''''Chigurh (Bardem) é apenas a versão em alta pressão da desumanidade
Vigente''''
''''Como pensador, Vieira defende um cristianismo estóico; como estilista, é a expressão dele''''
Entrevista:O Estado inteligente
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