Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Míriam Leitão - O fenômeno


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
13/2/2008

A picape do entrevistado da CNN, na conservadora Geórgia, trazia adesivos de apoio ao Exército americano e a Bush. O jornalista perguntou em quem iria votar, e ele disse: Barack Obama. O jornalista, surpreso, mostrou os adesivos e ele respondeu: "Sim, sou republicano. Vou votar no Obama porque ele é um fenômeno." Fenômenos eleitorais acontecem, e eles não têm explicação racional.

O senador por Illinois em primeiro mandato incendeia a imaginação dos jovens pela mistura única que é: negro, filho de um imigrante africano, orador de retórica apaixonada, político jovem, com uma proposta vaga, mas blindada com a mágica palavra "change" (mudança) e pelo poderoso bordão que virou clipe de cantores e celebridades: "Yes, we can." (Sim, nós podemos.)

Na devastada e abandonada New Orleans, esse discurso arrebatou esperanças e esvaziou as hostes dos Clinton, que se achavam fortes na comunidade negra. As vitórias do fim de semana eram esperadas. Ontem, em Washington DC, ninguém tinha dúvidas da vantagem de Obama, pela maioria afro-americana da capital.

Os negros se identificam com ele por motivos óbvios. Obama tem um discurso supra-racial também por motivos óbvios: qualquer marqueteiro aconselharia a ele um discurso de superação das divisões de raça, gênero e idade para ter chance de ser eleito.

O que facilita o discurso novo é o fato de ele não ter qualquer ligação com o passado de escravidão, que marca todos os países nos quais essa iniqüidade acontece. Os outros negros americanos não se vitimizam; foram, de fato, vítimas. Mas Obama não tem um antepassado que foi seqüestrado na África, trazido em campos de concentração flutuantes e consumido pelo trabalho forçado em alguma plantation. Obama cresceu num país que já tinha sepultado a segregação e iniciado um forte programa de inclusão dos negros na vida social, econômica e política. A América chegou na história da vida dele como oportunidade. No começo dos anos 60, ao fim da colonização européia, os Estados Unidos levaram estudantes africanos promissores para formar a nova liderança da África. Foi nessa esperança que seu pai chegou aos EUA, e isso permite também que ele se pareça com um outro grupo social americano: os filhos da imigração recente.

Obama não pode ser comparado a nada. Ele não pode ser apresentado como prova de que certos estão os que, aqui, defendem a tese de que não deve haver política de ação afirmativa, porque isso acentuaria as divisões étnicas. É um equívoco; mais um dos tantos que se comete no Brasil quando se analisa a questão racial.

Os Estados Unidos, com políticas de ação afirmativa, construíram uma sólida e afluente classe média negra. Isso não superou as divisões construídas historicamente, mas deu mais poder aos negros, fez deles um grupo eleitoral consciente e cortejado. Abriu portas nas grandes corporações a profissionais negros. Tornou possível um general negro como Colin Powell e mulheres negras poderosas como Condoleezza Rice. As diferenças não foram eliminadas, mas eles estão na elite.

A revista "Economist" avalia que a candidatura de Obama parecia ser a primeira "pós-triunfo racial", porque, apesar de ele raramente falar na questão, "incorporava a esperança de que a América pudesse transcender suas divisões". A publicação inglesa acha que a majoritária preferência por Obama entre os negros revela uma divisão racial no Partido Democrata que comprova que as divisões do país persistem.

Não é isso. A preferência por Obama não é prova de um conflito racial no eleitorado; da mesma forma que a preferência das mulheres por Hillary Clinton não é nenhuma guerra dos sexos. São dois grupos que, ao longo da História, sofreram tipos distintos do mesmo preconceito - serem subestimados por serem quem são, na cor e no gênero - e que estão agora diante de uma chance de ascensão ao símbolo maior do poder político do país. É natural que o eleitorado procure quem mais diretamente o represente. Ainda que as mulheres não sejam contra Obama, nem os negros contra Hillary. São apenas escolhas e identificações próprias de períodos eleitorais.

Hillary não está correndo riscos por ser branca, mas por ter cometido erros estratégicos. Apostou tudo na superterça, desconsiderou os pequenos estados que se seguiriam entre aquele dia e o 4 de março, quando os 220 delegados do Texas estarão em disputa. Acabou exposta a uma série de derrotas que a enfraquece diante do eleitorado e dos financiadores. Com menos dinheiro, ela tem menos propaganda na televisão - que lá é paga e consome a maior parte dos fundos de campanha. Com menos exposição, corre o risco de que o movimento Obama vire uma avalanche. O pior que poderia ocorrer ao Partido Democrata é a decisão final ser dos superdelegados. Repetiria, no espaço partidário, o que o partido sofreu em 2000 na eleição presidencial: o voto popular superado pela decisão de um colégio eleitoral.

A escolha dos democratas está sendo eletrizante e vai continuar prendendo a atenção do mundo. O erro é concluir, daqui, que o discurso de Obama pela união do país seja condenação à ação afirmativa. Seria o mesmo que condenar o feminismo. Obama só pode fazer esse discurso agora, pelo resultado das conquistas dos negros. Hillary só está lá porque o feminismo produziu uma geração de mulheres profissionais bem-sucedidas, da qual ela é uma representante. O que nos resta aqui é querer que haja na elite partidária bons quadros negros e mulheres para que um dia os brasileiros enfrentem o mesmo dilema dos democratas.

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