O mercadinho La Palma, a casa de carnes Reisman, a loja de vinhos Wine Company, a peixaria Golfinho e a padaria Cirandinha de Brasília são detentoras de informações que, se divulgadas, ameaçam o Brasil. Houve um tempo em que os militares achavam que risco à segurança nacional era tudo que fosse contra o regime. Hoje, segurança nacional é invocada para encobrir extravagâncias da Presidência.
Nunca se saberá no Brasil, pelo visto, o que é realmente segurança nacional.
A Amazônia devastada, a violência urbana, a persistência do analfabetismo que ainda hoje flagela três milhões de jovens, a ocupação de parte do território do Rio pelo tráfico de drogas, nada disso ameaça a pátria brasileira.
Os que exercem o poder têm interpretações exóticas sobre o tema. No passado, achavam que a ameaça vinha do pensamento divergente. Era uma idéia absurda. Hoje acham que ameaçador é informar os gastos com cartões feitos pelos funcionários que servem ao presidente da República e a seus filhos. E a interpretação é um escárnio.
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, autor do saudoso “Festival de Besteiras que Assola o País — Febeapá”, não teria muito trabalho no Brasil de hoje para encontrar as sandices políticas que alimentavam seu humor. Bastaria conferir, por exemplo, o que disse o Planalto sobre os R$ 205 mil gastos por três funcionários em guloseimas e bebidas caras para alimentar o presidente e seus convidados, nos momentos não previstos nas compras normais da cozinha presidencial.
Segundo o Planalto, a divulgação dessas informações “pode facilitar atos de terrorismo”.
Pede-se à ministra Marta Suplicy que vá ao Planalto e repita ao Gabinete de Segurança Institucional e à Casa Civil, responsáveis por essa interpretação, o que ela disse na Europa, quando se falou que no Brasil havia muita violência e por isso não era um país seguro.
“Pelo menos lá não tem terrorismo”, gabou-se.
Talvez a ministra tenha relaxado um pouco prem aturamente. A convicção da Presidência é que, se, um ano depois, os gastos com comes e bebes presidenciais forem divulgados, se saberá “quantas pessoas estão envolvidas”, e isso é que facilitaria os atos de terrorismo.
Ameaça também a segurança nacional saber que um dos seguranças de Lurian, a filha do presidente, gastou R$ 55 mil em cartões, uma média de R$ 6 mil por mês.
A Presidência está sob constante risco e ameaça.
Dos quase R$ 5 milhões gastos pela Presidência em cartões corporativos em 2006, só R$ 100 mil tinham nota fiscal porque o resto, segundo o Planalto informou ao Tribunal de Contas da União, era de despesas cuja divulgação ameaça a segurança nacional.
Mas podem os brasileiros dormir tranqüilos porque todas essas ameaças estarão conjuradas, em breve, pelos nossos bravos defensores da segurança nacional. O Gabinete de Segurança Institucional já informou que a divulgação dos gastos pelo portal Transparência foi uma “transgressão” e que os “responsáveis pela divulgação responderão a processos administrativos”.
A assessoria de imprensa do Planalto também já avisou que não comentará os gastos do funcionário de Lurian, porque não comenta nada que ameace a segurança do presidente e de sua família.
Quando estourou o escândalo da ex-ministra Matilde Ribeiro, o governo anunciou que, em resposta, aumentaria o uso dos cartões, mas limitando os saques em dinheiro vivo, que, só no ano passado, foram de R$ 44 milhões, feitos pelos que usam o cartão de crédito pago com o dinheiro dos contribuintes. O ministro da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage, afirmou que o risco era o uso do cartão para fraudar a Lei de Licitações. Mais uma das suas costumeiras confusões de interp retação.
O pior problema, que, até agora, ninguém do governo deu mostras de ter entendido, é o abusivo desrespeito ao limite entre o público e o privado.
O mesmo desrespeito que se viu em outros flagrantes deste governo, como o do episódio em que um filho do presidente convidou os amigos para, a bordo de um avião da FAB, irem para Brasília, onde usaram o Palácio da Alvorada como colônia de férias. Na época, a imprensa perguntou se realmente havia sido usado o avião da Força Aérea Brasileira para transportar os jovens em seus folguedos de férias, e o Planalto se negou a dar a informação.
Mas os próprios jovens, ao divulgarem na internet a foto de todos ao lado do avião, deixaram claro o flagrante de uso privado de recursos públicos.
Matilde, quando admitiu apenas “um erro administrativo”, mostrou que também não entendeu o que há de errado em usar o cartão pago pelos contribuintes até em dias de folga.
Os gastos com cartão corporativo estão tendo um aumento explosivo — 800% nos últimos cinco anos, chegando a R$ 75 milhões — e o governo quer ampliá-los. A divulgação dos gastos feitos por funcionários da Presidência foi considerada um atentado à segurança nacional, e os responsáveis serão punidos. O erro não foi o gasto; o erro foi divulgá-lo. E o portal Transparência fica assim avisado de que a máxima de Delúbio Soares — “transparência demais é burrice” — impregnou todo o governo.
Entrevista:O Estado inteligente
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