Há quem diga que o agronegócio é o herói da economia; há quem diga que é o vilão. O setor tem um pouco dos dois. Nas últimas semanas, o agronegócio foi atacado em várias frentes: aqui dentro, acusado de ser responsável pelo desmatamento; lá fora, enfrenta o embargo à carne pela União Européia. O setor tem se colocado como vítima, o que também não é. Ele tem grandes virtudes e erros inaceitáveis.
Parte da boa história econômica do Brasil nas últimas décadas não pode ser contada sem o agronegócio. O aumento impressionante de produção e produtividade da agricultura permitiu a queda dos preços dos alimentos em comparação a outros bens. A compra da comida passou a representar uma fatia menor do orçamento familiar. O dinheiro das famílias foi liberado para a compra dos outros bens de consumo. Casas mais bem equipadas melhoraram a qualidade de vida dos brasileiros. A indústria passou a vender mais.
O agronegócio não explica tudo, mas explica parte da estabilização brasileira.
Na outra ponta, a agricultura passou a exportar e conquistar mercados. Isso resgatou o país das aflições cambiais que nos atingiam nos anos 90. Não fizeram nada sozinhos, contaram com financiamento público e tecnologia da Embrapa, mas essa é a parte boa da história do agronegócio.
Existem também os erros.
Toda agricultura tem algum impacto no meio ambiente, mas o impacto não tem de ser tão violento quanto o que o Brasil sofre.
O país tem hoje um volume espantoso de terras deterioradas por uma agricultura agressiva ao meio ambiente e uma mentalidade atrasada que ainda hoje, em plena era do aquecimento global, resiste a se modernizar.
O fato de produzirem alimentos tem sido usado por seus líderes como álibi para a destruição do meio ambiente. Não é mais aceitável essa mentalidade.
Os produtores foram para o Centro-Oeste e para o Norte do país com a atitude de destruição. O governo militar chamava a Amazônia de “inferno verde”, em suas propagandas. Tinha uma visão militar e xenófoba da Amazônia: era o “integrar para não entregar”.
E integrar era ocupar desmatando. Nenhum governo civil fez, de fato, a mudança de paradigma. Os produtores agrícolas e seus lobistas-parlamentares jamais se modernizaram e por isso, ainda hoje, demandam coisas como o “direito de desmatar” 50% das propriedades da Amazônia.
E que “propriedades”! É difícil saber, no cipoal de ilegalidades da ocupação fundiária da Amazônia, o que é terra pública “privatizada” pela grilagem e o que é legal. Muita coisa mantém essa nuvem que impede o país de saber a fronteira entre o legal e o ilegal. O governo não tem controle sobre seu território e nunca conseguiu organizar a bagunça da ocupação selvagem da terra. Os órgãos financiadores oficiais nunca fizeram o básico: exigir documento de propriedade e comprovar o cumprimento da lei ambiental.
Os produtores transitam entre legalidade e ilegalidade, negócios ligam os dois lados e, por isso, não há a demarcação da fronteira entre o legal e o ilegal.
O consumidor não sabe o que come, desconhece as perversidades embutidas no produto que chega à sua mesa. Não tem como aferir.
O agronegócio do Sul e do Sudeste costuma ser apresentado como a parte moderna.
O do Norte, como selvagem. O do Centro-Oeste, como tendo um pouco dos dois. Não há essa divisão territorial. Muitos empresários do Sudeste têm fazendas também no CentroOeste ou no Norte. Um mesmo empreendimento tem padrões diferentes de comportamento. Meio modernos; meio arcaicos.
Um caso emblemático ilumina essa duplicidade. O empresário paulista J. Pessoa de Queiroz Bisneto teve um flagrante de trabalho degradante de índios em sua usina de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul.
Ele tinha assinado o pacto contra o trabalho escravo, feito parte da campanha contra o trabalho infantil, era da Unica e membro do conselho consultivo do Ethos. No dia em que liguei para ouvi-lo, fui informada de que ele estava “sobrevoando suas fazendas”.
Tem sete, em regiões diferentes.
Quando falei com ele, a resposta foi a de sempre: exagero dos fiscais.
Conversei com funcionários do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal e do Ministério Público que foram à fazenda, e os relatos do flagrante eram fortes e convincentes. Tratei dos detalhes em outras colunas.
Liguei para a Unica. O economista Marcos Jank tinha assumido um pouco antes a associação dos usineiros paulistas para modernizar a imagem da entidade.
Ele me disse: “Isso não aconteceu em São Paulo, não é com a Unica”, esquecendose de informar que José Pessoa era diretor da entidade, não um diretor qualquer, mas o de Responsabilidade Social. O Ethos informou que o suspendeu do conselho. O assunto permanece nebuloso.
As entidades empresariais devem ao país um trabalho de separação de joio e trigo. Existem hoje técnicas de transparência, prestação de contas e rastreabilidade para se saber quem é quem.
A Europa nos pediu que fizesse isso num quesito apenas: a sanidade do rebanho.
E o Brasil tem tropeçado nas próprias pernas ao cumprir o exigido pelo cliente. Outras exigências virão. Por protecionismo ou pela nova atitude do consumidor, o mundo não será conivente com nossa ambigüidade no agronegócio, com nossa aliança entre o legal e o ilegal, com a convivência do moderno com o arcaico.
Quem já deu os passos para a modernização deve ajudar o país na inadiável tarefa de combater a vasta rede de ilegalidade que nos ameaça e sufoca.