Não é de hoje que o governo Lula, quando surge um escândalo em seu meio, tenta disseminar a idéia de que o mesmo acontecia no governo de Fernando Henrique Cardoso. Como se, isso sendo verdade, estivesse justificada a leniência com os desmandos de sua administração. Ou então considera que, se a culpa for coletiva, ninguém será responsabilizado, fazendo funcionar um sistema corporativo de proteção mútua. A CPI que mais resultados teve até hoje, depois da que culminou no impeachment do ex-presidente Fernando Collor, foi a dos Correios, que acabou originando a denúncia contra os 40 envolvidos do mensalão, aceita pelo Supremo Tribunal Federal.
Pois já naquela ocasião, em 2005, quando o deputado Roberto Jefferson, temendo que o governo usasse a CPI para culpar apenas o PTB pelos desvios nas estatais, deu uma entrevista à “Folha de S.Paulo” denunciando que havia um esquema, organizado pelo chefe do Gabinete Civil José Dirceu, de dar mesadas a deputados em troca de apoio na Câmara, o governo agiu de maneira a tentar dividir a culpa entre sua base, exacerbando seu sentido de sobrevivência política.
O mensalão, como nos bastidores se referiam ao sistema de corrupção, virou o tema político mais candente, mas a reação inicial do governo foi ambígua. Houve quem, dentro do governo e com gabinete no Palácio do Planalto, considerasse que a situação criada pela entrevista de Jefferson era favorável ao arquivamento da CPI dos Correios, pois colocara todos — PT, PP, PL, PTB e até mesmo o PMDB — no mesmo barco, que afundaria se não houvesse solidariedade entre eles.
Esse mesmo raciocínio funcionou, até certo ponto, na tentativa inicial de retirada das assinaturas por parte de membros da base do governo, estava prevalecendo na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e, provavelmente, prevaleceria no plenário.
Mas a repercussão das denúncias foi muito maior do que a capacidade de acochambrar dos políticos, além do que havia a desconfiança, nunca comprovada, de que Roberto Jefferson, acostumado às lides criminais, teria gravado conversas comprometedoras com figuras ilustres do governo.
Especialmente uma, com o chefe da Casa Civil José Dirceu e com o ministro das Relações Institucionais Aldo Rebelo, em sua casa, quando, segundo seu relato, os dois “só faltaram se ajoelhar” para pedir que o PTB retirasse as assinaturas de seus deputados do requerimento da CPI dos Correios.
Como hoje, depois de falharem todas as tentativas de inviabilizar a CPI, o governo montou um esquema para dominar seus trabalhos, nomeando o presidente e o relator, com base em sua maioria nas duas Casas.
O senador petista Delcídio Amaral e o deputado peemedebista Osmar Serraglio, no entanto, seguiram um roteiro de imparcialidade que culminou com um relatório que deu origem à investigação do procuradorgeral da República, Antonio Fernando de Souza.
Desta vez o governo foi mais ágil e fez uma coisa inédita nos anais do Congresso: usou sua base partidária majoritária para convocar uma investigação contra si próprio.
Adiantando-se à oposição, deu uma aparente demonstração de imparcialidade, mas na verdade o que fez foi montar uma composição partidária na comissão de seu agrado.
Primeiro, combinou com os partidos grandes que apenas DEM, PSDB, PT e PMDB fariam parte da comissão, deixando de fora os partidos pequenos, mesmo aqueles que são da base do governo. Deu certo em parte, mas PPS, PDT e PV vão integrar a comissão por determinação da Mesa do Sen a d o .
Mas o governo se livrou da presença de um representante do PSOL, que tanto trabalho deu na CPI dos Correios com a então senadora Heloísa Helena. Também o governo conseguiu garantir a maioria na CPI, tendo em teoria 17 das 24 vagas, além da presidência e da relatoria.
É improvável que a base governista abra mão de exercer todos esses direitos, que lhe são assegurados pelas regras legislativas.
É também pouco provável que a oposição persista na tática de organizar uma CPI no Senado sobre o mesmo assunto, se sentir que a CPI mista foi criada para não investigar nada. Será sempre mais eficaz denunciar eventuais proteções da base governista e vazar informações que tornem inviável um trabalho de acobertamento do que montar uma CPI paralela.
Mas, mesmo com todo o controle possível de ser exercido dentro das regras regimentais, não há possibilidade de garantir que o governo terá assegurada tranqüilidade durante os debates, embora o deputado petista Luiz Sérgio, do Rio de Janeiro, seja completamente diferente do peemedebista Osmar Serraglio.
Sindicalista, ligado ao Campo Majoritário do PT e aliado incondicional do exministro José Dirceu, dificilmente Luiz Sérgio exercerá a relatoria com a independência que o deputado pelo Paraná exerceu. Nem mesmo o senador Neuto de Conto, do PMDB, parece propenso a exercer a presidência da CPI com independência, embora a proclame. Já se declarou contrário à investigação da família de qualquer presidente da República, como se protegesse com isso a segurança nacional.
Quando foi aprovada a CPI do governo Collor, o então chefe do Gabinete Civil, Jorge Bornhausen, um dos mais experientes políticos do país, fez um comentário fatal: garantiu que ela não daria em nada. Foi um erro de avaliação que ele compartilhou com grande parte dos políticos e analistas naquele momento, que nunca haviam visto uma CPI contra o governo dar em “alguma coisa”.
Mas, como dizia o presidente da Constituinte Ulysses Guimarães, em política, “sua excelência, o fato” acaba prevalecendo. Vamos aos fatos, portanto.