O Globo |
14/2/2008 |
Se há situações ridículas nesta história toda dos cartões corporativos, como ministros pagarem tapioca com dinheiro público e alegarem que foi por engano, ou hotel de luxo nas férias, mais ridículo ainda é tentar transformar uma eventual CPI numa farsa em que o governo, incapaz de controlar os gastos dos seus subordinados, pretende controlar a investigação sobre os gastos. O anarquista francês do século XIX Proudhon tem uma frase que ficou famosa: "A fecundidade do inesperado supera grandemente a prudência do estadista". E quando não há nem prudência nem estadista, o inesperado faz sempre uma surpresa, como já cantaria Johnny Alf. Quando o presidente Lula lamenta que o governo não tenha tido capacidade para controlar o uso dos cartões corporativos, cujos gastos estavam publicados no Portal da Transparência da Controladoria Geral da União, estava falando várias meias-verdades. Primeiro, porque, como demonstrou O GLOBO, o que está transparente no site da CGU representa apenas 11% dos gastos. Há denúncias sobre gastos abusivos dos cartões corporativos pelo menos desde 2005, e o governo optou, como em outras ocasiões, por negar sistematicamente a veracidade das acusações, sem a necessária prudência de negar em público e mandar investigar em privado. A sensação de impunidade, mesmo depois do escândalo do mensalão - ou talvez porque o escândalo acabou saindo barato para os envolvidos e para o governo como um todo até o momento - anestesiou todos os eventuais controles que o governo pudesse ter. Isso e o sentimento sincero de que a máquina pública dominada por "companheiros" pode ser usada desde que seja para o bem do país, ou por pessoas que se consideram imbuídas de uma missão especial, merecedoras do reconhecimento público. Não acontece apenas entre petistas, já terá acontecido antes em diversos governos, mesmo quando não havia o cartão corporativo. Mas é patético ver-se mais uma vez o governo e seus áulicos se agarrarem a essa tábua de salvação da culpa coletiva para tentar se livrar de eventuais punições. Já no sexto ano de um governo que se propôs a renovar a política nacional, assistimos pela enésima vez a tentativa de defesa dos deslizes governamentais se fazer através da generalização da culpa, como aconteceu no mensalão. O Supremo Tribunal Federal já aceitou a tese de que o mensalão, muito mais do que um simples "caixa dois", foi um golpe organizado por uma quadrilha, restando agora definir as culpas individuais e eventuais absolvições, por insuficiência de provas ou falta de culpa mesmo, quem sabe? Mas até hoje se tenta incutir na opinião pública não a inocência dos 40 envolvidos, mas a idéia de que tudo não passou de uma prática comum aos políticos brasileiros. Da mesma forma agora, na farra dos cartões corporativos, a tentativa de desmoralizar uma incipiente CPI, que corre o risco de acabar antes de começar, trata de minimizar os gastos indevidos com a tese de que sempre houve esse tipo de desvios de conduta no serviço público, não havendo razão para tamanho escândalo. Qualquer crítica que se faça é taxada como falso moralismo, e mais uma vez a saída é dizer que o governo do presidente anterior também será investigado, com o propósito de arranjar acordos que delimitem as investigações, uma espécie de chantagem preventiva que já não cora seus autores, nem provoca reações indignadas dos chantageados. Foi preciso que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso anunciasse que não aceitava o acordo, e que um grupo de políticos independentes se insurgisse contra a CPI "chapa-branca" que estava sendo montada, para que as investigações refluíssem ao seu leito natural: é preciso proteger a privacidade da família dos presidentes, não seus gastos com dinheiro público, se ocorreram. É necessário também haver o chamado "fato determinado" para instalar a CPI, e o mau uso dos cartões corporativos é motivo mais que relevante, como as denúncias surgidas aos borbotões demonstram. Portanto, não há razão para que se queira ampliar o raio de investigação para antes da existência dos cartões corporativos, a partir de 2001, mesmo sem denúncias específicas sobre o período. O caso do Portal da Transparência, que nem tão transparente assim é, pois só revela um décimo dos gastos do governo, é semelhante ao do Sistema Integrado de Administração Financeira, o Siafi, que abrange a programação financeira, a contabilidade e a administração orçamentária do governo federal. Implantado em janeiro de 1987, esse sistema foi criado com o objetivo de dotar o governo de "instrumento moderno e eficaz" do controle dos gastos públicos. Tornou-se o principal instrumento disponível de controle também externo das contas públicas, e foi o PT, através do senador Eduardo Suplicy, que transformou os dados do Siafi em poderoso instrumento político. Ele foi o primeiro a receber senha para entrar no sistema e ter acesso a toda contabilidade do governo federal. Graças ao PT, o Siafi tornou-se instrumento de transparência das contas federais. Mas, no início de 2004, quando os jornais noticiaram que o governo estava comprando, entre outras coisas, os hoje famosos 15 roupões "de algodão obrigatoriamente egípcio", a administração do PT tentou suspender o acesso dos congressistas. Como agora, a pretexto de garantir a "segurança nacional", quer restringir a divulgação de gastos da Presidência. Afinal, este é um governo marcado com a expressão do tesoureiro do mensalão, Delúbio Soares, para quem "transparência demais é burrice". Ou, na versão técnica do general Jorge Félix, "quanto menos transparência, melhor". |
Entrevista:O Estado inteligente
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