O Globo |
15/2/2008 |
Mais uma vez o Brasil está sendo colocado diante de um dilema na sua política de relacionamento com os países vizinhos: se exigir que a Bolívia cumpra integralmente o contrato de fornecimento de gás, vai criar problemas não apenas para a Bolívia, mas especialmente para a Argentina, que vive um problema de escassez de energia grave, com apagão e tudo. Além do mais, vai impedir que a Bolívia ganhe um dinheiro a mais aumentando a venda do gás para a Argentina, que paga um dólar a mais que o Brasil. Mas, em compensação, se abrir mão de uma parte do que tem direito por contrato, o governo estará agindo politicamente, pondo em risco nosso suprimento. Pelo raciocínio do governo de Evo Morales, enquanto a Bolívia está jogando com o gás o seu destino, o Brasil tem pela frente um futuro promissor dentro da economia globalizada. A Bolívia está tentando sair da pobreza baseada em seus recursos naturais, e o gás é a única possibilidade econômica de se desenvolver. Nos bastidores, o pedido é de compreensão da situação econômica difícil, que não melhorou desde a chegada de Evo Morales ao poder e a conseqüente estatização dos recursos naturais. A Bolívia está entrando em um processo inflacionário que merece cuidado, agravado pelo fato de que não há investimentos estrangeiros. Desde que o Evo Morales era candidato com chances à presidência da Bolívia, mesmo antes da estatização, os investimentos estrangeiros foram paralisados, e a produção de gás ficou estagnada. A produção de 2007 já foi menor 1 milhão de metros cúbicos de gás do que a do ano anterior. Para mostrar que não era tão dependente do Brasil como único comprador, o novo governo assinou um contrato com a Argentina que previa o fornecimento de 4,5 milhões até 7,7 milhões de metros cúbicos, se o gasoduto conseguisse carregar. Até 2016, há a previsão de fornecer 27,7 milhões de metros cúbicos para a Argentina, através do gasoduto que está sendo construído. Mas o país não tem produção para tanto: o contrato com o Brasil, anterior ao da Argentina, é de 32,5 milhões de metros cúbicos diários, sendo que 2,5 milhões seriam para a termelétrica de Cuiabá, que já não recebe o fornecimento desde o meio do ano passado. O consumo interno é de 6,4 milhões de metros cúbicos diários. Com o contrato com a Argentina, seriam no total 43,4 milhões de metros cúbicos diários, quando a produção hoje da Bolívia é de 34,6 milhões. Há um déficit de 8,8 milhões de metros cúbicos que terá que ser negociado entre Brasil e Argentina, por isso a reunião tripartite marcada para a próxima semana em Buenos Aires. O que a Bolívia quer é vender mais para a Argentina, que paga um dólar a mais que o Brasil, e negociar com os dois países para não pagar as multas contratuais, além de garantir a volta dos investimentos. Para se ter uma idéia de quão delicada é a situação dos investimentos na Bolívia, quando houve a abertura para a exploração de concessões, em 1997, as empresas estrangeiras, inclusive a Petrobras, investiram naquele ano US$605 milhões na Bolívia. Esse investimento caiu para US$98 milhões em 2006, e apenas US$50 milhões no ano passado. A Argentina está com mais falta de energia do que o Brasil; já teve um apagão lá no inverno passado; neste verão, houve em Buenos Aires o sistema "vagalume", acendendo e apagando a luz por rodízio nos bairros, e estão prevendo que no inverno próximo vai faltar mais gás ainda. Mas para mandar esses 4,5 milhões mínimos de que a Argentina necessita, a Bolívia não pode mandar nem os 30 milhões de metros cúbicos por dia para o Brasil. Do ponto de vista técnico, o Brasil não tem condições de abrir mão desse fornecimento, mesmo que a nossa situação energética não seja, no momento, mais tão dramática do que a da Argentina, devido às últimas chuvas. De qualquer maneira, está faltando gás no Brasil, alerta Adriano Pires, do CBIE. Se ligarmos as térmicas, não há gás para a indústria. Se o Brasil abrir mão de 2 a 3 milhões de metros cúbicos de gás, vamos ceder um produto que está faltando aqui dentro, e pode nos faltar na frente. O ideal é que pudéssemos ligar as térmicas a gás no período seco do próximo inverno para economizar os reservatórios, ressalta Pires. O "probleminha" da falta de gás, como definiu o presidente Lula na primeira vez em que ocorreu a falta de fornecimento por falha da Bolívia, só não vai se transformar num "problemão" porque houve chuva no início do ano. Aliás, a ajuda divina foi festejada ontem no plenário do Senado pelo bispo Marcelo Crivela, que não teve pejo de agradecer à Providência Divina a chuva que aparentemente nos livrou de um eventual "apagão". Com a ajuda divina, também a Bolívia tem mais espaço para negociar uma anistia brasileira da multa que teria que pagar pela falta de fornecimento. Embora tenha anunciado que voltaria a investir na Bolívia, a Petrobras ainda não efetivou a promessa, e certamente negociará os investimentos em troca de uma garantia de fornecimento de gás, como deixou insinuado na nota oficial divulgada ontem. Há uma relação de mútua necessidade, pois a Bolívia necessita dos investimentos brasileiros para que o negócio do gás se desenvolva, e também para que os demais investidores se considerem seguros para voltar a investir no país. E o Brasil precisa, por enquanto, do gás boliviano. Mas, com as novas descobertas anunciadas recentemente pela Petrobras, o cacife brasileiro aumenta muito nas negociações com a Bolívia. Resta saber o que vai pesar mais: as necessidades reais do país, ou o apoio político ao governo Evo Morales. |
Entrevista:O Estado inteligente
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