Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 10, 2008

Mailson da Nóbrega Às avessas

Pode-se prescrever o mesmo remédio a um paciente com sinais de anemia e a outro que aparenta excesso de peso? Pois é exatamente isso que deseja quem reclamou da manutenção da taxa básica de juros, a Selic, há duas semanas. Como o Federal Reserve (Fed) americano havia reduzido sua taxa básica de juros, falou-se que o Banco Central estaria na contramão.

Em seguida, o presidente do Banco Central Europeu declarou que não podia seguir o Fed, indicando que os juros serão mantidos na sua próxima reunião. A declaração azedou o clima desfavorável então prevalecente no mercado de ações em todo o mundo.

Estaria o sr. Jean-Claude Trichet na contramão?

Na verdade, Trichet traduziu a percepção de que a zona do euro e os Estados Unidos vivem situações distintas. Enquanto os americanos estão preocupados em evitar uma recessão prolongada, os europeus olham os riscos de inflação. Os dois casos não podem ter o mesmo tratamento.

Como explicou José Márcio Camargo em recente artigo, a economia americana é mais flexível do que a européia, particularmente no mercado de trabalho.

Nos Estados Unidos, aumentos relativamente pequenos da taxa de desemprego geram reduções significativas nos aumentos de salários. Assim, se vier a recessão, o crescimento do desemprego reduzirá o custo unitário do trabalho e a taxa de inflação.

Se o Fed estiver convencido da desaceleração, terá mais liberdade para reduzir os juros, o que vem fazendo e, provavelmente, continuará a fazer.

Já a economia européia é menos aberta e mais rígida, principalmente por causa do mercado de trabalho mais regulamentado.

Diante do maior poder dos sindicatos e de uma legislação trabalhista que dificulta a demissão, o desemprego demora a fazer efeito sobre os salários, dificultando a redução do custo unitário do trabalho.

Com uma economia mais fechada, a concorrência é menor. Se a economia estiver operando próxima de seu potencial, como parece ser o caso atualmente, os salários aumentam e seus custos são repassados aos preços, gerando inflação.

A diferença entre a situação brasileira e a americana é mais fácil de entender.

Nos Estados Unidos, os sinais são cada vez mais claros de que a economia já estaria em recessão.

No Brasil, as evidências são de aquecimento da demanda. A expansão real do crédito foi de 28% no ano passado, o mesmo ritmo das vendas de veículos. O comércio em geral deve ter crescido 10%. O desemprego atingiu 9,3%, a menor taxa desde 2002.

Além disso, os preços administrados devem crescer acima da inflação em 2008, ao contrário do que ocorreu em 2007. É que o reajuste da maioria deles é baseada no IGP-DI, que atingiu 7,89% em 2007.

Ao mesmo tempo, a taxa de câmbio dificilmente se apreciará aos níveis ocorridos em 2007. Tende a ser baixa ou nula sua contribuição para a queda dos preços dos bens comercializáveis.

Afora tudo isso, há as incertezas sobre a economia americana, cuja desaceleração terá efeitos sobre a brasileira e, provavelmente, sobre a taxa de câmbio. Ao mesmo tempo, existe clara deterioração das expectativas inflacionárias para 2008 e 2009.

Achar que o Banco Central poderia agir na mesma direção do Fed é revelar profundo desconhecimento do papel de um banco central e de como funciona a economia.

Incorrem no mesmo equívoco os que interpretam as recomendações de corte de impostos nos Estados Unidos e o pedido do Fundo Monetário Internacional (FMI) para que os países desenvolvidos aumentem gastos. Afirmam que se trata de medidas opostas às que nos diziam para tomar. Seriam ações do tipo "faça o que digo, mas não faça o que faço".

O raciocínio contém dois erros. Primeiro, aumentos de gastos públicos se justificam diante do risco de mudança comportamental derivada de perda de riqueza ou de incertezas quanto ao futuro. Nessa situação, pode ocorrer uma contração do consumo, gerando um excesso de poupança sobre o investimento. Foi essa a origem básica da Grande Depressão dos anos 30. O gasto público, como à época sugerida por Keynes, foi a solução.

Segundo, aumento do gasto público e, portanto, do endividamento não é para quem quer, mas para quem pode. Os países em desenvolvimento nem sempre gozam de confiança irrestrita para se endividar mais e piorar os índices de solvência do setor público.

Pior do que essas interpretações às avessas é dizer que os Estados Unidos estão praticando a heterodoxia keynesiana. Redução de impostos nunca foi heterodoxia. Colocar dinheiro nas mãos dos contribuintes nunca foi keynesiano.

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