Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Livros O Mapa Fantasma, de Steven Johnson

A peste está sempre à espreita

A história do médico que venceu o cólera em Londres
traz lições muito atuais de ciência e política urbana


Moacyr Scliar

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Nesta reportagem
Quadro: Guerra aos micróbios
Exclusivo on-line
Trecho do livro

Nas últimas semanas, um surto de febre amarela causou temor no Brasil. O vírus da doença é conhecido, assim como o seu modo de contágio, pela picada de certos mosquitos. Há uma vacina disponível. Ainda assim, o risco de epidemia existe, caso se descuide da vigilância sanitária. Essa é a triste verdade sobre males desse tipo: não basta dispor de armas contra o micróbio; é preciso estar alerta para condições ambientais e sociais que favorecem sua disseminação e manter políticas de saúde pública adequadas. Um belo livro sobre o tema do combate às epidemias chega às prateleiras no próximo dia 12. O Mapa Fantasma (tradução de Sérgio Lopes; Jorge Zahar; 276 páginas; 39,90 reais) fala da devastação que o cólera causou em Londres, em meados do século XIX. O grande mérito do autor, o americano Steven Johnson, foi transformar um episódio da história da ciência numa narrativa elétrica, que, como ele mesmo diz, tem vários protagonistas: uma bactéria letal, uma metrópole e um homem como o cientista John Snow, que para salvar vidas teve de lutar não apenas contra a natureza, mas também contra a ignorância.

A Londres de meados do século XIX era uma megalópole de 2,5 milhões de habitantes, precariíssima do ponto de vista do saneamento. O cólera era então, como outras doenças, atribuído a miasmas – emanações tóxicas de pântanos e regiões insalubres. John Snow discordava: o cólera, dizia, transmitia-se por via oral. Em 1854, ele comprovou sua teoria em condições dramáticas, quando a doença dizimou a população pobre do bairro do Soho. Profissional bem-sucedido, que teve a rainha Vitória entre os pacientes, Snow nem por isso deixou de visitar os miseráveis tugúrios onde moravam as vítimas do cólera. Num mapa da cidade, ele assinalou os lugares das mortes (daí o título do livro: no mapa de Snow, os mortos figuram simbolicamente como fantasmas). A concentração de óbitos nas vizinhanças da bomba de água de Broad Street apontava a conexão entre água e doença. Por proposta de Snow, o conselho administrativo da região mandou remover a bomba do poço, com o que os casos de doença diminuíram.

Segundo Steven Johnson, a investigação de Snow assinala "o momento em que um indivíduo de bom senso, pela primeira vez na história, analisou as condições da vida urbana e chegou à conclusão de que as cidades seriam um dia grandes algozes" em termos de disseminação de doenças. Snow foi um médico sagaz, observador, cético diante de dogmas e superstições – e uma prova de que o combate a epidemias com freqüência tem heróis e vilões. A história brasileira dá exemplos disso. Na virada do século XIX para o XX, o sanitarista Oswaldo Cruz, recém-alçado à chefia da Diretoria de Saúde Pública (o Ministério da Saúde de então), teve de combater – justamente ela – a febre amarela que grassava no Rio de Janeiro. Luminares da ciência sustentavam que a peste se propagava por meio do solo; Cruz, adepto da idéia correta de que o mosquito era o vetor, enfrentou zombarias e hostilidades. Mais tarde, ao tornar obrigatória a vacinação contra a varíola, Cruz viu eclodir uma revolta que transformou a capital do país em campo de batalha. Inversamente, quando um surto de meningite atingiu São Paulo, em 1974, uma decisão política equivocada do governo militar, que censurou notícias sobre o tema, deixou a população à beira do pânico.

Epidemias são situações-limite e, como tais, ensinam muito sobre a própria condição humana; não por outra razão inspiraram muitos escritores, como o Daniel Defoe de Diário do Ano da Peste (1722), um relato ficcionalizado do surto de peste bubônica que devastou Londres em 1665, e o Albert Camus do clássico A Peste. O Mapa Fantasma mostra como epidemias colocam à prova conhecimentos e práticas sociais e se constituem em desafios políticos. Não é obra de ficção, mas se lê com o mesmo prazer.


Foto Divulgação
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LIVROS
6 de fevereiro de 2008

Trecho do livro O Mapa Fantasma,
de Steven Johnson

(...)
A reciclagem de lixo, embora muitas vezes seja considerada uma invenção do movimento ambiental, tão moderna quanto as sacolas de plástico que enchemos atualmente com embalagens de detergente e latas de refrigerante, é uma arte antiga. Valas de compostagem eram empregadas pelos cidadãos de Cnossos, em Creta, há quatro mil anos. Grande parte da Roma medieval foi construída com materiais extraídos das ruínas da cidade imperial. (Antes de ser um ponto turístico, o Coliseu serviu como uma verdadeira pedreira.) A reciclagem do lixo – na forma de compostagem e adubação – desempenhou um papel crucial na explosiva expansão das cidades medievais da Europa. Uma densa concentração de seres humanos exige, por definição, uma significativa absorção de energia para se sustentar, a começar por um sistema confiável de abastecimento de alimentos. As cidades da Idade Média não dispunham de rodovias ou cargueiros para o transporte de gêneros alimentícios e, assim, o tamanho de suas populações estava limitado à fertilidade do solo circundante. Se a terra pudesse prover alimentos para cinco mil pessoas, a população estava limitada a esse número. Ao restituir à terra o lixo orgânico que produziam, no entanto, as primeiras cidades medievais aumentaram a produtividade do solo, elevando, portanto, o teto populacional, e, conseqüentemente, produzindo mais lixo – e cada vez mais solo fértil. Esse ciclo de realimentação transformou as extensões pantanosas dos Países Baixos, que historicamente sustentavam não mais que isolados grupos de pescadores, em alguns dos solos mais produtivos de toda a Europa. Ainda hoje, quando comparada a qualquer outra nação do mundo, a Holanda tem a maior densidade populacional.

A reciclagem de lixo demonstra ser o selo de qualidade de quase todo sistema complexo, quer os ecossistemas da vida urbana construídos pelo homem, quer as economias microscópicas das células. Nossos próprios ossos são o resultado de um programa de reciclagem levado a cabo pela seleção natural bilhões de anos atrás. Todos os organismos eucariontes produzem excesso de cálcio como resíduo. Desde, no mínimo, a Era Cambriana, os organismos acumulam essas reservas de cálcio e a usam de modo produtivo: construindo conchas, dentes e esqueletos. O homem deve sua capacidade de caminhar ereto à habilidade evolutiva de reciclar resíduos nocivos.

OS MAIS DIVERSOS ECOSSISTEMAS da Terra têm como atributo crucial a reciclagem do lixo. As florestas tropicais têm um grande valor, por desperdiçarem muito pouco a energia fornecida pelo Sol, graças a seu extenso e interligado sistema de organismos que exploram cada nicho mínimo do ciclo de nutrientes. A diversidade da floresta tropical não é apenas um caso curioso de multiculturalismo biológico, mas reside precisamente no fato de a floresta fazer um grande trabalho de captura da energia que a atravessa: um organismo absorve certa quantidade de energia, gerando, ao processá-la, um resíduo. Em um sistema eficiente, esse resíduo se torna uma nova fonte de energia para outro indivíduo da cadeia. (Essa eficiência é uma das razões que comprovam a visão limitada de quem promove queimadas nas florestas tropicais: os ciclos de nutrientes são tão interligados que o solo é, em geral, muito pobre para a agricultura, toda a energia disponível foi capturada ao longo de seu percurso até o solo da floresta.)

Os recifes de corais demonstram uma destreza semelhante na administração de resíduos. Os corais vivem em simbiose com pequenas algas chamadas zooxantelas. Graças à fotossíntese, as algas capturam a luz do Sol e a aproveitam para transformar dióxido de carbono em carbono orgânico, tendo o oxigênio como resíduo nesse processo. O coral usa então o oxigênio no seu ciclo metabólico. Por sermos, nós mesmos, criaturas aeróbicas, temos dificuldade em conceber o oxigênio como um produto residual, porém, do ponto de vista da alga, é justamente o que ele é: uma substância inútil, descartada como parte de seu ciclo metabólico. O próprio coral produz resíduos na forma de dióxido de carbono, nitratos e fosfatos, que auxiliam o desenvolvimento das algas. Essa íntima cadeia de produção e reciclagem de resíduos é uma das razões primordiais para que os recifes de corais sejam capazes de dar suporte a uma população tão densa e diversificada de animais, a despeito de residirem em águas tropicais, que em geral são pobres em nutrientes. Esses recifes são as cidades do mar.

Muitas são as causas que podem estar por trás de uma extrema densidade populacional – seja a população composta por peixes-anjos, cuatás ou seres humanos. Sem uma forma eficiente de reciclagem de resíduos, no entanto, essas densas concentrações de vida não sobrevivem por muito tempo. Grande parte do trabalho de reciclagem, tanto nas florestas tropicais como em centros urbanos, ocorre no nível microbiano. Sem os processos de decomposição promovidos pelas bactérias, a Terra teria ficado coberta de carcaças milhões de anos atrás, e o invólucro vital garantido pela atmosfera terrestre estaria próximo da superfície inabitável e ácida de Vênus. Se algum vírus pernicioso exterminasse todos os mamíferos do planeta, a vida na Terra prosseguiria sem sofrer grandes danos com essa perda. Se as bactérias desaparecessem da noite para o dia, no entanto, toda a vida no planeta se extinguiria em questão de anos.

Na Londres vitoriana, o trabalho desses catadores de lixo microscópicos não era percebido, e a grande maioria dos cientistas – para não mencionar os leigos – não tinha a menor idéia de que o mundo, de fato, fervilhava com minúsculos organismos que tornavam a vida humana possível. Apesar disso, era possível detectá-los por meio de outro canal sensorial: o olfato. Nenhuma descrição da Londres daquele período estaria completa se não mencionasse o fedor da cidade. Parte dessa fedentina vinha da queima de combustíveis industriais, mas os cheiros mais desagradáveis – aqueles que realmente ajudaram a promover toda uma infra-estrutura de saúde pública – vinham do constante e incansável trabalho de decomposição de matéria orgânica pelas bactérias. Mesmo aquelas fatais concentrações de metano nas tubulações dos esgotos eram produzidas por milhões de microrganismos que, diligentemente, transformavam excremento humano em biomassa microbiana, lançando, como resíduo, uma grande variedade de gases. Podem-se considerar essas explosões subterrâneas uma espécie de conflito entre dois tipos de catadores de lixo: de um lado, os exploradores de esgotos; de outro, as bactérias – embora vivendo em níveis diferentes, eles disputavam o mesmo território.

No fim do verão de 1854, no entanto, quando os cata-bagulhos, lameiros e catadores de ossos percorriam seus itinerários, Londres se encaminhava para uma outra batalha, ainda mais assustadora, entre micróbios e seres humanos. Algo que, ao final da estação, se comprovaria tão mortal quanto qualquer outro conflito na história da cidade.

EM LONDRES, o mercado informal da catação de lixo tinha seu próprio sistema de castas e privilégios. Próximos ao topo se encontravam os limpadores de fossa, que, como os adoráveis limpadores de chaminés de Mary Poppins, eram trabalhadores autônomos que atuavam nos limites da economia formal. Seu trabalho, porém, era significativamente mais repulsivo do que o de lameiros e cata-bagulhos. Os senhorios da cidade contratavam aqueles homens para remover os dejetos das fossas transbordantes de suas casas. A coleta de excremento humano era uma ocupação venerável: em tempos medievais, os limpadores de fossa eram conhecidos como "catadores" e desempenhavam um papel indispensável no sistema de reciclagem de resíduos que ajudou Londres a se transformar em uma verdadeira metrópole, graças à venda de dejetos aos fazendeiros além dos muros da cidade. (Mais tarde, alguns empreendedores desenvolveram uma técnica de extração de nitrogênio a partir do esterco para reutilização na fabricação de pólvora.) Ainda que os catadores e seus sucessores recebessem uma boa paga, as condições de trabalho podiam ser fatais: em 1326, um desafortunado trabalhador conhecido como Richard, o Catador, caiu em uma fossa e literalmente se afogou em merda humana.

No século XIX, os limpadores de fossa desenvolveram uma dinâmica precisa para sua atividade. Trabalhavam no turno da madrugada, entre meia-noite e cinco da manhã, em grupos de quatro: um "homem-corda", um "homem-buraco" e dois "homens-tonéis". O grupo afixava lanternas na beirada da fossa e, em seguida, removia a pedra ou as tábuas que a cobriam, às vezes com uma picareta. Se os dejetos estivessem muito próximos da borda, o homem-corda e o homem-buraco começavam a encher o tonel com uma concha. Finalmente, à medida que os dejetos eram removidos, abaixavam uma escada e o homem-buraco entrava na fossa para encher o tonel. Uma vez cheio, o homem-corda ajudava a puxá-lo e o passava aos dois homens-tonéis que entornavam os dejetos na carroça. Era comum os limpadores de fossa receberem uma garrafa de gim por seu trabalho. Como um deles relatou a Mayhew: "Eu diria que bebíamos uma garrafa de gim a cada duas fossas, ah, e às vezes eram duas a cada três fossas limpas em Londres; se bem que, pensando bem, creio que eram três garrafas a cada quatro."

O trabalho era repugnante, mas o rendimento era bom. Muito bom, como se comprovaria. Graças à sua proteção geográfica contra invasões, Londres se tornou a mais vasta das cidades européias, expandindo-se muito além dos muros romanos. (A outra grande metrópole do século XIX, Paris, tinha praticamente a mesma população espremida em metade do território.) Para os limpadores de fossa, a expansão significava mais tempo de transporte – agora as terras cultiváveis à disposição estavam, em geral, a quinze quilômetros de distância –, o que encarecia a remoção de dejetos. Na era vitoriana, os limpadores de fossa cobravam um xelim por fossa, um rendimento que era ao menos o dobro do que ganhava um trabalhador medianamente habilidoso. Para muitos londrinos, o custo financeiro da remoção de dejetos era maior do que o custo ao ambiente de, simplesmente, deixá-los acumular – particularmente para os senhorios, que em geral não moravam próximo das fossas transbordantes. Cenas como a relatada por um engenheiro contratado para inspecionar a reforma de duas casas na década de 1840 tornaram-se comuns. "Descobri que toda a área dos porões estava coberta por um monturo de cerca de um metro de dejetos humanos, que se acumularam ao longo dos anos com o transbordamento das fossas. ... Ao atravessar a primeira casa, encontrei, em um jardim coberto por uma camada de dez centímetros de excrementos, alguns tijolos que foram ali colocados para permitir que os moradores passassem sem sujar os pés." Outro relato descreve um monturo em Spitalfields, no coração de East End: "Um monte de esterco da altura de uma casa razoavelmente grande e um tanque artificial no qual o conteúdo das fossas era arremessado. Esses dejetos ficavam, então, secando a céu aberto e eram freqüentemente revolvidos com esse propósito." Em 1848, Mayhew descreveu esse cenário grotesco em um artigo publicado no jornal londrino Morning Chronicle, que buscava identificar o ponto em que se originou o surto de cólera daquele ano:

Percorremos, então, a London Street. ... No número 1 dessa rua o cólera aparecera pela primeira vez há dezessete anos e se espalhara com terrível virulência; mas, neste ano, a doença irrompeu do lado oposto e desceu a rua com igual violência. À medida que passávamos pelos fétidos aterros da rede de esgoto, o Sol brilhava sobre uma fi na camada de água. Sob a luz brilhante, assemelhava-se à cor de chá verde forte e positivamente parecia tão sólida quanto mármore preto à sombra – na verdade, era mais uma lama aquosa do que uma água enlameada; e ainda assim nos asseguravam de que aquela era a única água que aqueles infelizes moradores dispunham para beber. Enquanto a olhávamos horrorizados, vimos alguns encanamentos da rede de esgoto despejando ali seu imundo conteúdo; vimos toda uma série de privadas, voltada para o meio da rua e construída sobre o filete de água; baldes e baldes de imundície ali entornados; e os braços de alguns jovens vagabundos que ali se banhavam pareciam, por força do mero contraste, mármore de Paros. E, ainda assim, enquanto estávamos ali parados, incrédulos diante daquela demonstração, vimos, em uma das galerias adjacentes, uma menininha abaixar uma lata com o auxílio de uma corda para encher o tonel que jazia a seu lado. Em cada um dos balcões que se projetavam sobre o canal, podia-se ver a mesma barrica na qual os moradores depositavam o fétido líquido, a fim de que pudessem, depois de um ou dois dias de descanso, livrá-lo das partículas sólidas de sujeira, poluição e doença. Enquanto a menininha balançava com a maior delicadeza possível sua lata, um tonel de excrementos foi arremessado de uma galeria próxima.

A bem da verdade, a Londres vitoriana possuía maravilhosos cartões postais – o Palácio de Cristal, a Trafalgar Square, o reformado Palácio de Westminster. No entanto possuía também maravilhas de outra ordem, não menos notáveis: tanques artificiais de esgoto e enormes monturos de esterco do tamanho de casas.

Os elevados custos dos limpadores de fossa não eram os únicos culpados pelo crescente fluxo de excrementos. A desenfreada popularidade dos vasos sanitários com descarga d’água agravava a crise. No fim do século XVI, um dispositivo desse feitio fora inventado por sir John Harington, que até mesmo instalara uma versão de seu invento para uso de sua madrinha, a rainha Elizabeth, no Richmond Palace. O invento, porém, só decolaria no fi nal do século XVIII, quando o relojoeiro Alexander Cummings e o marceneiro Joseph Bramah solicitaram a patente para duas distintas e aperfeiçoadas versões do projeto de Harington. Em seguida, Bramah iniciou um rentável negócio de instalação de privadas em casas mais abastadas. De acordo com uma fonte, a instalação de vasos sanitários foi multiplicada por dez no período de 1824 a 1844. Houve um novo impulso depois que o fabricante de vasos sanitários George Jennings instalou seus produtos para uso público no Hyde Park, durante a Grande Exibição de 1851. Cerca de oitocentos e vinte e sete mil pessoas utilizaram as instalações. Os visitantes, sem dúvida, se maravilharam com a espetacular exibição de cultura global e moderna engenharia, mas, para muitos, a experiência mais surpreendente foi simplesmente sentar-se pela primeira vez em uma privada com descarga d’água.

Embora representassem um notável avanço no que diz respeito à qualidade de vida, os vasos sanitários tiveram um efeito desastroso sobre a rede de esgotos da cidade. Na ausência de um sistema de encanamentos ao qual pudesse se conectar, a maioria das privadas simplesmente despejava seus conteúdos nas fossas existentes, aumentando significativamente sua tendência ao transbordamento. De acordo com uma estimativa, em 1850, uma casa usava em média cento e sessenta galões de água por dia. Em 1856, graças ao crescente sucesso das privadas, o uso aumentou para duzentos e vinte e quatro galões no mesmo período.

Isoladamente, no entanto, o fator mais relevante para desencadear a crise de remoção de dejetos era uma mera questão demográfi ca: a quantidade de pessoas que geravam lixo praticamente triplicara no intervalo de cinqüenta anos. Na virada para o século XIX, Londres tinha cerca de um milhão de habitantes; no entanto, no censo de 1851, esse número saltou para dois milhões e quatrocentos mil. Mesmo com uma moderna infra-estrutura urbana, a administração desse tipo de explosão demográfica é difícil. Porém, sem qualquer infra-estrutura, dois milhões de pessoas subitamente forçadas a dividir uma área de cento e quarenta quilômetros quadrados não representavam apenas um iminente desastre – era um permanente e retumbante desastre, um vasto organismo que destruía a si mesmo ao depositar despojos em seu próprio meio ambiente. Quinhentos anos depois, Londres recriava, lentamente, a trágica morte de Richard, o Catador: a cidade afundava em sua própria imundície.

ASSIM AMONTOADAS, todas aquelas vidas humanas levavam a uma inevitável conseqüência: uma onda de cadáveres. No início da década de 1840, um jovem prussiano de vinte e três anos chamado Friedrich Engels desembarcava a mando de seu pai, um industrial, na cidade para uma empreitada comercial, que inspiraria um clássico da sociologia urbana e um moderno movimento socialista. Sobre suas vivências em Londres, Engels escreveu:

Os cadáveres [dos pobres] não têm melhor destino do que as carcaças dos animais. O cemitério dos indigentes em St. Bride é um verdadeiro pântano a céu aberto, utilizado desde os tempos de Charles II e coberto com pilhas de ossos. Às quartas-feiras, os despojos dos desvalidos são arremessados em uma cova de quatro metros de profundidade. Com palavras breves, um pároco celebra o funeral e, em seguida, a cova é coberta de terra. Na quarta-feira seguinte, abre-se novamente o buraco e isso se repete até que esteja completamente tomado. Toda a vizinhança encontra-se impregnada por esse terrível fedor.

Um cemitério particular em Islington amontoou oitenta mil cadáveres em uma área destinada a abrigar no máximo três mil. Um coveiro do local relatou ao Times de Londres que estava afundado "em carne humana até os joelhos, saltando sobre os corpos, a fim de espremê-los no menor espaço possível no fundo das covas, para que os corpos recém-chegados fossem posteriormente colocados".

Dickens enterrou o misterioso escritor viciado em ópio, morto por overdose no início de A casa soturna, em um local igualmente repugnante, inspirando uma das mais famosas, e comoventes, passagens do livro:

Um cemitério cercado, pestilento e obsceno, de onde doenças perniciosas se alastram pelos corpos de nossos irmãos e irmãs que ainda não partiram. ... De ambos os lados, as casas observam, exceto onde no pátio um túnel, fétido e diminuto, dá acesso ao portão de ferro – com cada vilania da vida em ação nas proximidades da morte e cada nocivo traço da morte em ação nas proximidades da vida – aqui, nosso querido irmão afunda alguns poucos centímetros; aqui, semeado pela corrupção, para se elevar em corrupção; um fantasma vingador à cabeceira de muitos leitos doentios; um infame testemunho para eras futuras de como civilização e barbárie atravessam esta presunçosa ilha de mãos dadas.

A leitura dessas últimas sentenças nos permite vivenciar o nascimento do que se tornaria o modelo retórico dominante do pensamento do século XIX, um modo de atribuir sentido ao massacre tecnológico da Grande Guerra ou à eficiência taylorista dos campos de concentração. O teórico social Walter Benjamin retomou o lema original de Dickens em sua enigmática obra-prima Teses sobre a fi losofi a da história, escrita enquanto o flagelo do fascismo encobria a Europa: "Não há qualquer documento de civilização que não seja igualmente um documento de barbárie."

A oposição entre civilização e barbárie era praticamente tão antiga quanto a própria cidade cercada por muros. (Assim que se construíram portões, surgiram bárbaros dispostos a derrubá-los.) Mas Engels e Dickens sugeriam uma nova perspectiva: que o avanço da civilização produziu a barbárie como seu inevitável resíduo, tão essencial a seu metabolismo quanto os pára-raios e as idéias refinadas da sociedade urbana. Os bárbaros não estavam atacando os portões. Eles eram alimentados de dentro. Marx pegou essa idéia, envolveu-a com a dialética de Hegel e transformou o século XX. Porém, a própria idéia originou-se de certo tipo de experiência de vida – do chão, como alguns ativistas gostam de dizer. Veio, em parte, da visão dos seres humanos que eram enterrados em condições que ultrajavam tanto os mortos como os vivos.

Em um aspecto crucial, no entanto, Dickens e Engels se equivocaram. Por mais repulsiva que fosse a visão das sepulturas, muito provavelmente os cadáveres não estavam disseminando "doenças perniciosas". O fedor era suficientemente opressivo, mas não "infectava" ninguém. Uma cova rasa coberta de corpos em decomposição era uma afronta aos sentidos e à dignidade humana, mas o odor exalado não representava um risco à saúde pública. Ninguém morreu por causa do fedor da Londres vitoriana. Dezenas de milhares morreram, entretanto, pois o medo da pestilência os cegou para os verdadeiros perigos da cidade e os levou à implementação de uma série de reformas mal direcionadas que apenas agravaram a crise. Dickens e Engels não foram os únicos: praticamente todo o meio médico e o político cometeram o mesmo erro fatal: todos, de Florence Nightingale ao pioneiro reformador Edwin Chadwick, dos editores de The Lancet à própria rainha Vitória. Em geral, a história do conhecimento concentra suas atenções nas idéias de ruptura e nos saltos cognitivos. No entanto, os pontos cegos no mapa, os sombrios continentes de erros e preconceitos, carregam também seu próprio mistério. Como tantas pessoas inteligentes puderam se equivocar tão completamente por um período tão extenso? Como puderam ignorar tantas evidências esmagadoras que contradiziam suas teorias mais básicas? Essas questões merecem igualmente sua própria disciplina – a sociologia do erro.

O medo da contaminação da morte pode às vezes durar séculos. Em meio à Grande Peste de 1665, o conde de Craven adquiriu uma extensão de terra em uma área semi-rural chamada Soho Field, a oeste do centro de Londres. Construiu ali trinta e seis pequenas casas "para receber indivíduos pobres e miseráveis" acometidos pela doença. O restante da terra era usado como sepultura comum. Toda noite, as funestas carroças despejavam dezenas de corpos no terreno. Segundo algumas estimativas, mais de quatro mil corpos infectados pela peste foram ali enterrados em uma questão de meses. Moradores das redondezas deram-lhe o nome apropriadamente macabro e sonoro de "campo da peste do conde de Craven" ou, simplesmente, "campo de Craven". Por duas gerações, ninguém ousou erigir qualquer fundação naquelas terras por medo de infecção. Com o tempo, o inexorável apelo da cidade por mais moradias venceu o medo da doença e o terreno das doenças contagiosas tornou-se o elegante distrito de Golden Square, habitado basicamente por aristocratas e imigrantes huguenotes. Ao longo de outros cem anos, os esqueletos repousaram tranqüilos sob a agitação do comércio da cidade, até o fim do verão de 1854, quando a deflagração de um novo surto acometeu sobre Golden Square e invocou as almas repugnantes que regressaram para assombrar, mais uma vez, as extensões de seu último descanso.

NAS DÉCADAS que se seguiram à peste, à exceção do campo de Craven, Soho se tornou rapidamente um dos bairros mais elegantes de Londres. Quase uma centena de famílias com títulos de nobreza ali morava na década de 1690. Em 1717, o príncipe e a princesa de Gales fixaram residência em Leicester House, no Soho. A própria Golden Square, ocupada por elegantes casas georgianas, tornara-se um refúgio distante do tumulto de Piccadilly Circus, vários quarteirões ao sul. No entanto, em meados do século XVIII, as elites continuaram sua inexorável marcha para o oeste, construindo casas ainda mais grandiosas no novo bairro burguês de Mayfair. Em 1740, restavam somente vinte moradores com títulos de nobreza. Surgia um outro tipo de morador do Soho, muito bem representado pelo filho de um negociante de malhas que nasceu no número 28 da Broad Street em 1757, uma criança talentosa e problemática chamada William Blake, que se tornaria um dos maiores poetas e artistas da Inglaterra. Próximo dos trinta anos, Blake retornou ao Soho e abriu uma gráfica ao lado da loja de seu falecido pai, agora administrada por seu irmão. Pouco depois, outro irmão de Blake abriu uma padaria do outro lado da rua, no número 29, e, assim, em poucos anos, a família Blake constituíra um pequeno e crescente império na Broad Street, com três negócios distintos no mesmo quarteirão.

A combinação de visão artística e espírito empreendedor definiria a região por várias gerações. À medida que a cidade se industrializava e à medida que o antigo dinheiro se esvaía, o bairro tornava-se mais e mais efervescente; os senhorios compartimentavam as velhas casas em apartamentos distintos, enquanto os pátios entre as construções eram ocupados por depósitos e estábulos improvisados. Dickens descreveu com maestria esse cenário em Nicholas Nickleby:

Na região de Londres na qual se localiza a Golden Square há uma rua antiquada, sem graça e decadente, com duas fi leiras de casas altas e esguias, que parecem há anos encarar umas às outras com um ar desaprovador. As próprias chaminés parecem mais sinistras e melancólicas por nada terem para olhar senão as chaminés do outro lado da rua. ... A julgar pelo tamanho, essas casas foram ocupadas por pessoas em melhores condições do que seus atuais moradores; agora, porém, foram desmembradas, semana a semana, em pavimentos e cômodos, e cada porta tem tantas placas e campainhas quanto o número de apartamentos que há ali. As janelas são, pela mesma razão, sufi cientemente diversifi cadas em aparência, decoradas com todas as variedades ordinárias de anteparos e cortinas que se pode facilmente imaginar; de modo que o vão de cada porta encontra-se bloqueado, o que o torna praticamente intransitável, por uma mistura heterogênea de crianças e vasos de todos os tamanhos, dos bebês de colo e vasos de meio litro às moças feitas e vasilhas de meio galão.

Em 1851, Berwick Street, no lado oeste do Soho, era o mais densamente povoado de todos os cento e trinta e cinco subdistritos que compunham a Grande Londres, com cento e oito habitantes por quilômetro quadrado. (Mesmo com seus arranha-céus, Manhattan abriga hoje algo em torno de vinte e cinco habitantes por quilômetro quadrado.) A paróquia de St. Luke no Soho abrigava um pouco mais de sete casas por quilômetro quadrado. Em Kensington, por sua vez, esse número era de apenas meia casa por quilômetro quadrado.


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