A saga das duas Áfricas Muitos países da região prosperam, mas é difícil perceber no meio do caos da maioria Diogo Schelp
Yasuyoshi Chiba/AFP | Quenianos da etnia luo em confronto com quicuios: o barril de pólvora das rivalidades tribais | Não é a primeira vez que imagens deste tipo, capazes de nos encher de horror, podem ser vistas nos jornais e na televisão. Multidões enfurecidas e dispostas a trucidar os próprios vizinhos, casas em chamas, estradas repletas de refugiados em pânico, rostos e corpos dilacerados a golpes de facão. Nas últimas semanas, essas cenas chocantes vêm do Quênia. É natural que muita gente veja nessa nova explosão uma prova de que os estados africanos são ingovernáveis e estão condenados ao fracasso. De fato, no Quênia, na Somália, no Sudão e no Congo, para citar só os casos mais agudos, a rivalidade tribal, as paixões religiosas, a pobreza e a corrupção desmedida alimentam um ciclo perverso de violência e desesperança. A dúvida que emerge dessa constatação é a seguinte: esse cenário aplica-se por igual a todo o continente? A resposta é não. Nem todos os países africanos estão fadados a ser os perdedores da globalização, a mendigar ajuda internacional e a penar em intermináveis conflitos armados. Quase passa despercebido, mas nos últimos anos a taxa anual de crescimento econômico da África Subsaariana – mais conhecida no passado como África Negra – ficou um pouco além de 5%, acima dos 3,5% da média mundial. Favorecida pela alta no preço do petróleo, a economia angolana cresce quase 16% ao ano desde 2003. Pelo mesmo motivo, a do Chade mantém o ritmo de 12,5%. Uganda e Botsuana abriram a economia, privatizaram empresas ineficientes de serviço público e fizeram outros ajustes necessários para atrair a atenção de investidores estrangeiros. A África ainda é considerada pelo Banco Mundial o pior lugar do mundo para fazer negócios – mas, mesmo assim, os investimentos estrangeiros triplicaram desde os anos 90. Isso decorre sobretudo de muitos países terem alcançado uma condição mínima: a estabilidade política. O número de conflitos armados no continente caiu pela metade nos últimos quinze anos. Evidentemente, ainda persistem vários pesadelos, como a limpeza étnica promovida em Darfur pelo governo do Sudão e a violência endêmica na República Democrática do Congo, que custa a vida de 45.000 congoleses por mês. "Existem duas Áfricas. Aquela que avança e aquela que está parada no tempo", disse a VEJA o economista americano Stephen Golub, autor de estudos sobre o ambiente de negócios em países africanos. "O progresso existe, mas é frágil porque essas duas Áfricas coexistem den-tro de um mesmo país." Golub ilustra seu argumento com o Quênia. Até dois meses atrás, o país da África Oriental era considerado um modelo de desenvolvimento para os padrões da região. No ano passado, a expansão de sua economia foi de 4,5%. Até dezembro último, quando eleições suspeitas serviram de estopim para a atual violência, era fácil esquecer que mesmo o Quênia, com sua reputação de tolerância e instituições democráticas, estava dividido por linhas tribais perfeitas para ser utilizadas para fins políticos. A rivalidade tribal é um eterno pavio aceso devido à percepção – quase sempre correta – de que o grupo étnico no poder vai ajudar primeiro seu próprio povo e marginalizar sem dó os demais. Na África, a miséria é tão grande e o ponto de partida para o crescimento tão baixo que os avanços conseguidos até agora nem sempre parecem fazer diferença. Metade da população ao sul do Saara, mais de 300 milhões de pessoas, vive em condições extremas de pobreza – ou seja, subsiste com menos de 1 dólar por dia. Essa é a má notícia. A péssima é que esse número permanece praticamente estável há quinze anos. Na maioria dos países africanos o crescimento populacional supera com folga o do produto interno bruto (PIB). Isso significa que a economia cresce, mas a renda per capita continua baixa. O contraponto com o restante do mundo é arrasador. Enquanto a renda per capita na região cresceu 25%, no Leste Asiático esse indicador aumentou oito vezes nos últimos 45 anos. Os países africanos precisam desesperadamente de maior quantidade de empregos. Nesse quesito, infelizmente, o investimento estrangeiro tem ajudado muito pouco. A maior parte dos recursos vai para setores que exigem relativamente pouca mão-de-obra, como a extração de minérios e de petróleo. Na verdade, não há muitas outras opções de investimento. Com exceção da África do Sul, responsável por um terço do PIB da região, nenhum outro país africano tem uma economia diversificada ou um setor relevante de produtos industrializados. "Poucas empresas têm interesse em instalar suas fábricas na África porque lá está a força de trabalho menos qualificada e menos saudável do mundo", disse a VEJA o americano Douglas Woodward, especialista em economia da África Subsaariana da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Como se não fosse suficiente, ainda há, para espantar, o fantasma daqueles países realmente no fundo do poço – como o Zimbábue, com inflação anual de 16.000%, o Congo, onde a corrupção faz sumir pelo ralo a receita com o petróleo, e o antes promissor Quênia, agora dilacerado pelas rixas tribais. | | Publicidade | | | |