Os colombianos que cruzam a fronteira com o
Brasil para escapar da guerrilha narram os
horrores do conflito que já matou 45 000 pessoas
Otávio Cabral
AFP |
Fuga e medo: as principais vítimas da guerrilha são índios e camponeses que moram nos territórios conflagrados |
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Os conflitos entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o Exército de Libertação Nacional (ELN), as milícias paramilitares e o Exército regular colombiano têm chamado cada vez mais a atenção do mundo pelos episódios de brutalidade patrocinados por todos os lados envolvidos. No Brasil, a conseqüência mais visível do confronto pode ser encontrada nas cidades da fronteira entre os dois países. Para escaparem da violência da guerrilha terrorista, mais de 100 colombianos cruzam todos os meses a Floresta Amazônica a pé, em barcos ou em pequenos aviões. São, em sua maioria, índios e camponeses. Quase nenhum deles fala português. Em comum, todos são fugitivos da brutalidade da guerra civil que assola a Colômbia há mais de quarenta anos. São vítimas das Farc e de seus grupos rivais. Seus relatos ajudam a desnudar a ação dos guerrilheiros, que alguns ainda cultuam com o romantismo do século passado, quando heróis, teoricamente mais fracos, se insurgiam contra inimigos poderosos em nome de uma revolução socialista. Durante três semanas, VEJA visitou os exilados colombianos em quatro cidades brasileiras. Eles são mais de 17 . 000, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), e já formam a maior comunidade de exilados no país. Seus relatos revelam que os terroristas, principalmente os ligados às Farc, o maior dos grupos guerrilheiros em ação no continente, são cruéis e nada lembram os ideais que eles juram defender. São bem armados, lucram com a produção e a venda de cocaína, seqüestram, assassinam, aliciam crianças, cometem crimes sexuais, roubam comida de camponeses e espalham minas terrestres que já provocaram a morte e a mutilação de milhares de civis colombianos. As vítimas estão, principalmente, entre a população mais pobre. Apenas 490 fugitivos conseguiram até agora o status oficial de refugiado no Brasil. O restante, cerca de 17 . 000, vive praticamente na clandestinidade.
• Nos últimos doze anos, cerca de 7 000 seqüestrados passaram pelos cativeiros das Farc. Hoje, há mais de 700 reféns em poder dos guerrilheiros, 44 deles são prisioneiros políticos, que as Farc querem trocar por terroristas presos.
Ana Araujo |
A família do ex-vereador Fredy Ortiz, que teve de fugir para o Brasil depois de "condenado" à morte pelas Farc: "A droga financiava as atividades da guerrilha e alimentava a violência na cidade. As Farc dão o veredicto e executam a pena. Eu sabia que minha sentença de morte seria cumprida" |
Lilia Esther já foi uma influente ativista de direitos humanos na Colômbia. Presidente de uma entidade que denunciava a violência das Farc, dos paramilitares e do governo colombiano, Lilia colecionou antipatias de todos os setores envolvidos na conflagração de seu país. Ameaçada de morte, ela viveu, até 2003, num programa de proteção do governo. Só se deslocava em carro blindado, tinha seguranças em tempo integral e só era autorizada a participar de eventos públicos com a inspeção prévia do esquadrão antibomba. Seus três filhos estudavam em escolas especiais para jovens ameaçados. Suas viagens, por mais próximas que fossem, eram feitas sempre de avião, para evitar emboscadas. "Não tinha vida pessoal. Não podia comer fora, sair para dançar, ir a um cinema, nada. Minha vida era um terror, tudo era arriscado", relembra Lilia, que, semanalmente, recebia cartas com ameaças de morte. Os algozes mandavam coroas de flores com seu nome. O principal temor de Lilia era em relação aos filhos. Em 2003, um grupo armado invadiu a escola onde as crianças estudavam e, por pouco, não conseguiu seqüestrá-las. Depois disso, a ativista se mudou para o Brasil. Casada com um brasileiro, Lilia montou um salão de beleza e até hoje tem medo de ser localizada pelos guerrilheiros. Por isso, pede para não revelar a cidade onde reside. "No meio dessa guerra sem sentido, que já dura 45 anos, quem sofre é a população civil. Os paramilitares entram em uma região, não querem saber se há mulher ou criança, e acabam com tudo. Depois chegam as Farc e querem fazer ainda pior para mostrar que têm mais força, mais poder. Por fim, vêm os militares e agridem os sobreviventes para saber quem foi o culpado pelos ataques. A competição não é para ver quem é o melhor, quem tem o melhor projeto para o país. O objetivo é ver quem é o pior, o mais cruel", relata a ex-ativista e hoje cabeleireira.
• A guerrilha das Farc domina todas as fases para a obtenção da cocaína na Colômbia, a maior produtora mundial da droga. Segundo as estimativas oficiais, essa atividade rende aos narcoguerrilheiros 590 milhões de dólares por ano.
Fredy Ortiz mora numa favela de Manaus com a mulher e dois filhos há um ano. No início da década de 90, ele era empresário e uma promissora liderança política da cidade de Saravena, no departamento de Arauca. A região estava sob o controle das Farc e do Exército de Libertação Nacional. Ortiz se elegeu vereador e presidia a Câmara local até o dia em que vetou três projetos que destinavam recursos para entidades suspeitas de promover desvios. As entidades pertenciam às Farc e o dinheiro tinha a guerrilha como destino. O vereador foi sumariamente "condenado" à morte. "Deixei tudo para trás, peguei meu carro e fugi com minha mulher e meu filho na madrugada", conta. "Até hoje não sei o fim que tiveram minha loja e minhas duas casas." Ortiz escondeu-se em Letícia, uma cidade próxima à fronteira com o Brasil. Lá, conheceu outra faceta da guerrilha. Ele lembra que, em 2006, houve uma onda de execuções no bairro onde morava. Pensou tratar-se da guerra pelo controle do tráfico. "As Farc controlavam toda a produção e o tráfico de cocaína da região, que é a maior produtora do país. No início, os guerrilheiros apenas vendiam proteção aos traficantes. Depois, passaram a controlar todo o processo. A droga financiava as atividades da guerrilha e alimentava a violência na cidade", lembra. Ortiz descobriu que, na verdade, todas as vítimas da matança eram, assim como ele, fugitivos da guerrilha. Foi quando decidiu cruzar a fronteira. Por ter militado politicamente, seu pedido de refúgio foi negado.
Fotos Ana Araujo | ujo |
A ativista Lilia, que virou cabeleireira no Brasil: "Quem sofre é a população civil. Os paramilitares chegam e acabam com tudo. Depois chegam as Farc e fazem pior. Por fim, vêm os militares e agridem os sobreviventes" | O artista plástico Luis Rey, que foi perseguido porque a guerrilha desconfiou que sua mulher era informante do Exército: "Para não morrer, fugi. Deixei tudo para trás, só levei minha filha e uma maleta de roupas" |
• Desde 1964, quando as Farc surgiram, 45 000 colombianos morreram. Nos últimos cinco anos, mais de 5 000 pessoas foram assassinadas em 930 chacinas.
Luis Eduardo Rey era casado com uma enfermeira de um hospital, na cidade de La Dorada, no departamento de Caldas, região central do país, que atendia guerrilheiros feridos em combate. Em 2004, o Exército colombiano invadiu seu local de trabalho e prendeu um líder guerrilheiro que havia sido baleado. Os guerrilheiros acusaram a enfermeira de delação. Para escapar de uma execução certeira, a mulher fugiu para a Europa com a ajuda de organizações internacionais. Os guerrilheiros decidiram então se vingar da família. Rey começou a receber recados de que ele e a filha adolescente seriam mortos. "Para não morrer, fugi. Deixei tudo para trás, só levei minha filha, uma maleta de roupas e um pouco de dinheiro que consegui com minha família. Se ficasse, não estaria mais vivo", narra ele, com a voz embargada. A primeira escala da fuga foi no Equador. Lá, conseguiu ser reconhecido como refugiado, mas a perseguição continuou. Uma noite, Rey estava em um bar quando dois homens armados chegaram e anunciaram que sua sentença seria finalmente cumprida. Ele conseguiu escapar e ser transferido para Natal, no Rio Grande do Norte, onde sobrevive vendendo artesanato.
• As Farc e os paramilitares têm na extorsão um meio de financiamento. Cobram taxas do faturamento de comerciantes, fazendeiros, empresários e pro-dutores rurais.
A índia Filomena, que fugiu para o Brasil após as Farc transformarem sua aldeia em um campo minado: "Era muito perigoso plantar. Eles levavam toda a comida. Abacaxi, mandioca... Não deixavam nada. Não tinha o que comer, tinha muita fome" |
O taxista Pedro Rodriguez já ganhou a vida de uma maneira confortável. Ele morava em uma pequena cidade no Departamento de Casanare, região central da Colômbia. Dono de uma empresa de jardinagem, Pedro conta que há dez anos as Farc fecharam lojas e proibiram a contratação de serviços por parte da prefeitura. Ele só não faliu porque, meses depois, chegaram os paramilitares e expulsaram os guerrilheiros. Pedro reativou seus negócios. A tranqüilidade, porém, não duraria muito. Os paras, como são conhecidos, começaram a adotar os mesmos métodos dos guerrilheiros. Extorquiam empresários, recrutavam compulsoriamente jovens e adolescentes e matavam os rivais. Um dia, Pedro recebeu a visita deles. Ele e um colega fazendeiro decidiram não pagar mais a vacuna, como é chamada a extorsão. Informaram isso aos comandantes. No dia seguinte, os guerrilheiros invadiram a fazenda de seu amigo, que foi executado com mais quinze pessoas. "Só sobrou a mulher, grávida, que estava no banheiro quando os homens chegaram. Mataram até os cachorros", lembra. Pedro soube que estava numa lista de pessoas marcadas para morrer e decidiu cruzar a fronteira.
• A Colômbia é a atual líder do ranking mundial das vítimas de minas terrestres. Em sete anos, 9 500 pessoas foram atingidas pelos artefatos terroristas em área de selva.
A índia Anatílde morava em uma aldeia tukano próxima à fronteira com o Amazonas. As Farc invadiram o lugar. "Ficaram dois dias. Queimaram as lojas e mataram os comerciantes. Destruíram a única agência bancária e levaram todo o dinheiro. Também roubaram a comida e libertaram todos os prisioneiros da cadeia", conta ela. Os guerrilheiros sempre usaram as áreas indígenas como base de apoio, transformando a selva em campo minado. "Desde então, meus pais não conseguiam mais trabalhar. Havia risco de plantar e uma mina explodir. Muita gente morreu assim. Também havia risco de ir para a cidade e sofrer uma emboscada", conta Anatílde. Os terroristas passaram a saquear as aldeias em busca de comida e animais. Ninguém podia sair de casa depois da meia-noite. "Eu trabalhava e eles levavam toda a comida. Abacaxi, mandioca... Não deixavam nada. A gente ficava com muita fome", conta a índia Filomena, mãe de Anatílde. Além da comida, ainda levavam os índios como recrutas e obrigavam as índias a servir sexualmente os guerrilheiros.
Funcionários da ONU encontram índios colombianos que fugiram para o Brasil |
• O Ministério da Justiça reconhece que entre os milhares de colombianos que chegam ao Brasil há muitos "invisíveis", como são chamados os guerrilheiros com prisão decretada ou "condenados" pelos grupos rivais.
O padre Medina, membro das Farc: refúgio concedido apesar da lei |
O personagem mais conhecido desse contingente é o ex-padre Olivério Medina. Ele chegou ao Brasil em 1997, recebido como uma espécie de embaixador das Farc. Estava marcado para morrer pelas mãos dos paramilitares e era procurado pelo governo, acusado de homicídio e terrorismo. O padre foi apontado pelo serviço de inteligência brasileiro como mentor de um plano pelo qual as Farc repassariam 5 milhões de reais para a campanha do presidente Lula. Não há provas de que o dinheiro do narcoterrorismo realmente tenha chegado ao Brasil, mas as relações entre o padre e os petistas sempre foram muito intensas. Em julho de 2006, em meio a um processo de extradição, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) concedeu a condição de refugiado a Medina, apesar de a legislação não autorizar o benefício a quem tenha tomado parte em conflito. Segundo Luiz Paulo Barreto, presidente do Conare, o refúgio foi concedido a Olivério Medina porque ele corria risco de vida na Colômbia, está desmobilizado da guerrilha e se comprometeu por escrito a não participar de atividades políticas no país. Explica Barreto: "Sem dúvida é uma situação excepcional. Mas, como ficou comprovado que ele precisava de proteção, o refúgio foi concedido".
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