Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 15, 2008

VEJA Entrevista: Marcílio Marques Moreira


Escassez de ética

O ex-presidente da Comissão de Ética diz que falta sensibilidade ao governo e que, hoje, quem respeita a lei é considerado imbecil


Otávio Cabral

Oscar Cabral

"Preocupa-me ouvir declarações de autoridades no sentido de que transgressões são rotineiras na vida pública brasileira. Isso é inaceitável"

O embaixador Marcílio Marques Moreira está na vida pública há cinqüenta anos e onze presidentes. Foi assessor especial do Ministério da Fazenda no governo João Goulart, ministro da Fazenda do governo Collor e, até o mês passado, presidente da Comissão de Ética Pública no governo Lula – órgão responsável pela análise da conduta dos altos funcionários da República. Uma de suas últimas ações foi apontar o conflito de interesses que havia no fato de Carlos Lupi acumular o cargo de ministro do Trabalho e a presidência do PDT. O embaixador recomendou que ele abandonasse um dos postos. De início, o ministro não só não lhe deu ouvidos como ainda recebeu o apoio incondicional do presidente Lula. Depois acedeu. Mas, desapontado, Marcílio deixou a comissão antes. O embaixador diz que o episódio, além de revelador da fragilidade dos princípios éticos dos governantes, teve um efeito pedagógico. Em entrevista a VEJA, ele não critica diretamente a postura do presidente Lula no episódio, mas diz que a sensibilidade ética não é uma característica marcante dos ocupantes de postos importantes em Brasília, principalmente no Palácio do Planalto.

Veja – O senhor deixou a presidência da Comissão de Ética Pública há três semanas, embora seu mandato terminasse apenas em maio. Por que o senhor saiu do cargo abruptamente?
Marcílio – Achei que minha contribuição estava esgotada. Fiz tudo o que devia ter feito, e não tinha mais como ajudar porque a atuação da comissão ficou muito "fulanizada". Virou uma disputa minha contra o ministro Lupi, o que era prejudicial à própria comissão. Achei melhor prosseguir na luta pela ética em outros fóruns.

Veja – Desde novembro o senhor alertava para o fato de Carlos Lupi ocupar os dois cargos. Na semana em que o senhor deixou o cargo, pipocaram denúncias de favorecimento pelo ministério a entidades ligadas ao partido, o que acabou obrigando o ministro a deixar a presidência do PDT. Foi a prova de que o senhor tinha razão?
Marcílio – Sim, foi a demonstração clara do conflito de interesses, uma definição que não é bem compreendida pela classe política. Nós alertamos sobre esse risco não só para evitar desvios, mas também para resguardar a própria autoridade. Esse conceito de ética pública é recente. Nos Estados Unidos, que são um dos pioneiros, o primeiro conselho de ética surgiu com John Kennedy. Depois, Lyndon Johnson lançou uma norma chamada de ato da percepção, que definia que a autoridade pública não precisa apenas ser correta, tem de parecer correta. Isso inspira confiança e respeito. Quando uma autoridade serve a dois chapéus, o público fica em dúvida sobre a qual chapéu ela está servindo ao tomar determinada decisão. Era o caso do ministro Lupi.

Veja – O presidente Lula classificou Carlos Lupi como "o mais republicano dos ministros"...
Marcílio – Preocupa-me ouvir declarações de autoridades no sentido de que transgressões são rotineiras na vida pública brasileira. Isso é inaceitável e demonstra que a sensibilidade ética é escassa no Palácio do Planalto.

Veja – É uma referência ao presidente Lula?
Marcílio – O presidente não é sujeito à competência da comissão, não dá para fazer considerações sobre ele. Mas posso dizer que a falta de sensibilidade ética é algo que permeia todo o altiplano do governo.

Veja – O senhor coordenou, ao lado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o livro Cultura das Transgressões no Brasil, lançado há três semanas. As transgressões éticas são um problema cultural?
Marcílio – Em alguns aspectos, essa leniência com a corrupção se acentuou. A rapidez da transformação do Brasil, a transição de um país quase feudal para um país rumo à modernidade em 100 anos, destruiu os códigos da sociedade e não criou outro. Você sai do Rio de Janeiro, anda menos de 100 quilômetros e é como se viajasse 100 anos. Essa contradição, essa desigualdade, contribuiu para a leniência com os maus costumes. Há um autor, Otávio de Faria, que em 1931 escreveu que muitos de nós aprendemos a transgredir já no colégio, com a cola. Ainda crianças, aprendemos como enganar e burlar a lei. Mas também aprendemos como nos desculpar quando pegos. E há uma frase que eu acho simbólica: "Se todos fazem, não só pode como tem de fazer. É tolo quem, podendo se aproveitar, não o faz". É atual até hoje. Portanto, esse é um problema da própria sociedade. Se você estiver em uma estrada viajando na velocidade máxima e houver um sujeito atrás mais rápido, querendo ultrapassá-lo, você se sente um imbecil. Quem anda dentro da lei hoje é considerado um imbecil. Essa leniência com desvios, com transgressões, começando com as pequenas, como jogar papel na rua, furar o sinal vermelho, dar uma "cervejinha" ao guarda que quer multar, é algo que permeia a sociedade.

Veja – O senhor foi ministro da Fazenda no governo Collor, que caiu por corrupção em uma situação econômica adversa. Trabalhou no governo Lula, que também sofreu com denúncias graves de corrupção, mas é campeão de popularidade muito em razão do sucesso da economia. A população é mais leniente com a corrupção quando está com o bolso cheio?
Marcílio – É uma tese plausível, tendo a concordar. As autoridades em uma situação de popularidade, porém, não podem se iludir com esses dados. Todos têm de agir com firmeza em bons e maus momentos. No caso do governo Collor, além da evidente corrupção e da crise econômica, houve o problema da governabilidade, que não pode ser minimizado. Eu testemunhei o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio, trabalhei no governo João Goulart. Vi que um presidente que perde a maioria no Congresso fica muito instável.

Veja – O senhor passou três anos na presidência da Comissão de Ética. Nesse tempo, estouraram escândalos como o do mensalão, o caso Renan e a crise dos cartões corporativos. A corrupção aumentou no governo Lula?
Marcílio – Há três razões para termos hoje a sensação de que há mais corrupção no país. Primeiro, as expectativas éticas sobre esse governo eram muito grandes. O PT sempre foi muito identificado com o combate à corrupção e no poder deixou a desejar nesse aspecto. A segunda razão é que, por inexperiência ou por preocupação com o problema da governabilidade, houve um relaxamento com as nomeações. Essa discricionariedade de nomear mais de 20.000 cargos apenas por bases de interesses políticos está na raiz da corrupção. A Comissão de Ética considera as nomeações políticas legítimas, mas o indicado tem de ter formação, experiência, capacidade e honestidade. A comissão pediu que o currículo dos dirigentes fosse colocado nos sites dos órgãos, mas isso nunca foi obedecido. Por último, há também uma maior transparência, uma maior divulgação dos casos de corrupção.

Veja – A CPI dos Cartões Corporativos começou a funcionar na semana passada. A principal discussão entre governo e oposição é sobre se os gastos do presidente e de seus antecessores podem ser abertos ou devem ser sigilosos. Qual a sua opinião sobre esse assunto?
Marcílio – Ninguém no serviço público pode gastar sem prestar satisfação. Apenas o que for realmente relativo à segurança tem de ser preservado. Mas os gastos comuns que envolvem presidentes e seus familiares precisam de transparência. A Constituição diz que toda a administração pública tem de se guiar por cinco princípios: legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficácia. Ninguém pode escapar disso, nem o presidente nem seus familiares.

Veja – Virou praxe os partidos de oposição defenderem a instalação de CPIs, mas quando estão no poder eles fazem todo o esforço para evitá-las. Isso não reforça a impressão de que todos os políticos são iguais?
Marcílio – Esse é um dos principais problemas da política. Os desvios seguidos, cometidos por todas as correntes, acabam causando uma falta de confiança nas autoridades. Isso desemboca no cinismo deletério da troca de acusações, que acaba igualando toda a classe política. É um perigo para a democracia.

Veja – Como presidente da comissão, o senhor recebeu várias consultas de autoridades. Pelo teor dessas consultas, o senhor acha que o tema ganhou mais importância nos últimos anos?
Marcílio – Houve avanços. Há um reconhecimento de boa parte das autoridades da importância da ética como um marco a ser seguido. A maioria das consultas era sobre interpretações. Um ministro sabe que pode andar em avião oficial quando vai para sua cidade, mas não sabe se pode levar a mulher, por exemplo.

Veja – Em quais casos a comissão conseguiu impedir ações que se configuravam como conflito de interesses?
Marcílio – O ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, colocou todo o seu patrimônio para ser administrado por um fundo sobre o qual ele não tinha controle, o que foi apoiado pela comissão. O ministro Gilberto Gil, da Cultura, me consultava assim que recebia um convite para fazer um show ou ceder uma música dele para ser utilizada em publicidade. Quando não havia conflito de interesses, a comissão não via empecilhos. Mas quando o show era bancado por alguma entidade que recebe dinheiro público, como uma vez aconteceu com o Sesc de São Paulo, ou quando o evento era financiado pela Lei Rouanet, eu sugeria que ele não participasse. E ele aceitava os conselhos. Houve ainda o caso do ministro Mangabeira Unger, que por orientação da comissão só tomou posse depois de cortar todos os vínculos que mantinha nos Estados Unidos com empresas que têm interesse em atos do governo brasileiro.

Veja – Houve algum outro caso em que as recomendações da comissão não foram levadas a sério?
Marcílio – Alguns casos menores. Principalmente em eventos como Fórmula 1, Carnaval e torneios de tênis, quando as autoridades são convidadas por empresas privadas. A comissão recomendou que os convites fossem recusados, mas algumas pessoas os aceitaram. Já foi pior, porém ainda acontece.

Veja – Há uma idéia de que os escândalos de corrupção no Legislativo, como o do mensalão e o dos sanguessugas, serviriam para depurar a política. É isso que acontece ou os escândalos acabam servindo na verdade para atrair mais desonestos em busca de dinheiro fácil?
Marcílio – Os escândalos não tiveram a função depurativa que se esperava deles, principalmente devido à impunidade, que atrai para a política pessoas pouco preocupadas com a ética. Boa parte é culpa da Justiça, que só impede a candidatura de quem tenha condenação definitiva. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro tenta mudar isso, impedindo a candidatura de quem tenha qualquer condenação por corrupção. Essa mudança é essencial. No direito privado, você pode fazer tudo o que a lei não proíbe. Mas, no direito público, não, você só pode fazer aquilo que a lei determina. A lentidão e a leniência do Judiciário acabam favorecendo a corrupção.

Veja – Como diplomata e ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, qual é a sua avaliação da política externa do governo Lula?
Marcílio – O Brasil não avaliou bem o que estava acontecendo com o mundo e se propôs a ir além do que as nossas sandálias permitem. Mudar daqui a radiografia econômica do mundo é demais ambicioso. Era importante se dar conta de que a radiografia do mundo estava mudando por causa da entrada de dois dragões, a China e a Índia. Nossa diplomacia não olhou isso, ficou em um discurso vazio de priorizar o Sul e desprezou o mercado dos Estados Unidos, que sempre foram nosso principal parceiro. Abrimos leques demais, mas acabamos não ganhando nenhuma parada. O Brasil não conseguiu vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, não conseguiu a direção da OMC, não conseguiu a presidência do BID, não conseguiu melhorar o ambiente dos acordos comerciais, colocou o Mercosul em uma crise enorme. Conseguiu destruir a Rodada Doha sem fazer outros acordos bilaterais. O discurso parecia bonito, mas os resultados foram parcos.

Veja – Como tem atuado a diplomacia brasileira, em sua opinião, na política sul-americana, especificamente nesse episódio entre Colômbia, Equador e Venezuela?
Marcílio – Essa crise mostrou que nossa política foi um pouco condescendente com Chávez, com Evo Morales, com esses líderes sem muito apreço pela democracia. Isso acabou minando um pouco a nossa liderança regional, que deve ser natural pelo nosso tamanho e pela nossa história. O Brasil apaziguou muito certas transgressões à liberdade de imprensa, a nossos próprios interesses. É uma situação com a qual devemos ter muita preocupação. O que aconteceu entre a Colômbia e o Equador pode se espalhar pelo continente.

Veja – O senhor foi ministro da Fazenda no governo Collor, quando a dívida externa e o FMI eram tabus. Hoje o Brasil tem recursos para pagar a dívida e não depende mais do FMI. O atual governo foi melhor que os antecessores na economia?
Marcílio – O sucesso da economia é a confirmação de que, quando uma meta é perseguida como política de estado, sem picuinhas partidárias, ela produz excelentes resultados. Quando fui embaixador em Washington, a situação era dramática. A moratória foi feita no governo Sarney porque a capacidade do país tinha se exaurido totalmente. Não foi um ato político, foi a constatação de uma realidade. Ainda na minha gestão na Fazenda, em setembro de 1992, teve início a renegociação do acordo com o FMI. Pedro Malan era o responsável pela renegociação. O Brasil seguiu todos os termos do acordo, sem mudanças demagógicas, e agora culminou em virar a página da dívida externa para começar a escrever a história do crédito externo. O governo Lula deu continuidade a essa estrutura composta de austeridade fiscal, combate à inflação por metas e câmbio flutuante. Foi um de seus principais acertos.

Arquivo do blog