Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 29, 2008

História A estupidez da censura guardada no Arquivo Nacional

Memórias da estupidez

Em nome do "bom gosto", até Mário de Andrade
teve poemas censurados pela ditadura militar


Marcelo Bortoloti

Pedro Martinelli
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Adoniran Barbosa e a letra de Tiro ao Álvaro, vetada: a "falta de gosto" impediu a liberação da música

Em 1970, a gravadora Festa preparou um disco em homenagem a Mário de Andrade, morto 25 anos antes, com alguns de seus mais conhecidos poemas. Cumprindo a exigência legal de então, o projeto foi submetido ao Serviço de Censura de Diversões Públicas. Resposta: seis poemas proibidos. Entre eles, Ode ao Burguês ("Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês!") e Lira Paulistana (veja na pág. ao lado). As razões dos vetos eram alegadamente estéticas. "Falta de gosto" era expressão recorrente. Histórias como essa aconteceram com freqüência durante o regime militar instalado em 1964. Mas acabaram ficando em segundo plano na memória do período, por causa da truculência da censura musical exercida com motivação política. VEJA recolheu alguns desses casos nos acervos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e de Brasília, onde as pastas relativas à ação da censura ocupam mais de 800 metros lineares de prateleiras.

Esse quase 1 quilômetro de manifestações de arrogância e ignorância abriga pareceres que vetaram, provisória ou definitivamente, 1 023 letras de músicas – só nos anos 70. O veto a Lira Paulistana foi justificado nos seguintes termos: "Quanta falta de preparo, assunto, gosto e tudo...". Sobre Ode ao Burguês, o censor observou: "O autor, que vem primando pela falta de gosto, só pode ter mais uma de suas letras interditadas". Em bom português, o senhor jamais ouvira falar em Mário de Andrade e simplesmente não gostara do texto. Também sob alegações como "falta de gosto" ou "falta de inspiração", foram censuradas letras de Adoniran Barbosa e Lupicínio Rodrigues.

O caso de Adoniran é um dos mais eloqüentes. O compositor, que nunca teve militância política, foi censurado por utilizar em suas letras uma linguagem coloquial, com erros propositais de gramática. Em 1973, cinco de suas canções foram vetadas, inclusive as que já haviam sido gravadas na década de 50. Os pareceres são assinados pela censora Eugênia Costa Rodrigues. Na letra da música Tiro ao Álvaro (veja acima), ela circula as palavras "tauba", "artomorve" e "revorve". E conclui: "A falta de gosto impede a liberação da letra". Tiveram o mesmo destino outras quatro canções, entre elas Já Fui uma Brasa ("Eu também um dia fui uma brasa. E acendi muita lenha no fogão") e Casamento do Moacir ("A turma da favela convidaram-nos para irmos assistir o casamento da Gabriela com o Moacir"), essa última considerada de "péssimo gosto".

Divulgação
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Mário de Andrade e Lira Paulistana, um de seus poemas mais conhecidos: 25 anos após a morte do autor, o censor leu, não gostou e vetou

Na obra de Lupicínio Rodrigues, o alvo foi sua música Bicho de Pé, mais tarde batizada de Sozinha ("Vivia sozinha num ranchinho velho feito de sopapo"). Em 1973, foi proibida com um parecer lapidar: "A falta de inspiração leva o autor a poetizar um bicho-de-pé, colocando elemento subdesenvolvido como exemplo do caráter feminino". Vetos com esse teor ajudam a compreender o clima de pessimismo entre os artistas naquele período. "A ação da censura era imprevisível, não havia critério. Isso criou em todos nós uma película de autocensura e um sentimento de desânimo diante de tanta coisa que não passava", diz o compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho.

O Serviço de Censura de Diversões Públicas foi criado em 1946, por um decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra. A intenção era separar a censura exercida em nome da moral e dos bons costumes da censura política, que fora exercida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda durante o Estado Novo. Nunca antes de 1964, no entanto, os censores trabalharam com tanto afinco. Na dúvida, vetava-se. No caso específico das proibições de caráter estético, o pano de fundo era o projeto dos militares de "civilizar" a população brasileira, considerada despreparada e manipulável. Carlos Fico, pesquisador da UFRJ, diz que muitos censores acreditavam realmente estar fazendo um trabalho pedagógico. "Eles se consideravam intelectuais ou educadores", diz.

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