O terreno fino entre a política e a economia é pouco entendido e é onde muito acontece. A alta popularidade do presidente Lula hoje é, muitas vezes, interpretada como resultado de um carisma pessoal que o torna imbatível. Nesse terreno fino, operam-se milagres, como um político assumir como seu o que antes detestou e condenou. “Nós temos o Proer”, é a última de uma série de apropriações do presidente Lula.
Lula se vê, assim, como invencível e, por isso, desafia os opositores: “Tirem o cavalinho da chuva.” O que o torna forte como todos imaginam é um período de volta do crescimento num contexto de prolongada inflação baixa. Houve, nos dois últimos anos, o mesmo que aconteceu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso logo após o Plano Real: a inflação baixa aumentou a capacidade de compra, muita gente deixou de ser pobre e entrou na classe C, pelo efeito da queda brusca da inflação, que antes lhe corroía a renda. O consumo deu saltos. Isso é história e, como todos se lembram, deu uma segunda vitória a Fernando Henrique, apesar de todos os tremores econômicos vividos em 97 e 98. As restrições ao consumo, naquela turbulenta desvalorização, fizeram mergulhar os índices de aprovação presidencial logo no começo do segundo mandato e animaram a oposição a lançar o “Fora FHC”.
Os últimos dois anos foram uma repetição daquela onda de consumo de 94-96. Agora, alavancada pela inflação baixa por muito tempo, pela ampliação dos programas de transferência de renda, como Bolsa Família, e pelo crescimento do crédito. O aumento do volume dos empréstimos estava marcado para acontecer. Era etapa do processo de normalização da economia. O Brasil vivia, por conta da sua longa moléstia inflacionária, uma atrofia no mercado de crédito. Esta expansão estava prevista para ocorrer quando os juros caíssem dos níveis extraordinariamente altos para apenas altos, como são atualmente.
O fenômeno foi ajudado pelo crédito consignado.
As estatísticas de queda do percentual de pobres e extremamente pobres concordam inteiramente com as de consumo: elas registram dois saltos, o primeiro logo após o Real; o outro, no governo Lula, de 2004 a 2007.
Assumir a paternidade dos sucessos está na lógica da política. É natural que o sucesso tenha pais, e que quem colha se declare o dono da colheita. Portanto Lula afirma sem pejo e esquecido do que fez e disse no passado: “Nós temos o Real”; “Nós temos a Lei de Responsabilidade Fiscal”; “Nós temos saldo comercial”; “Nós temos o Proer” e também “Nós temos um mercado de consumo de massas”. Yes, nós temos! Que se deixem os políticos com suas meias verdades, com suas contradições esquecidas, com suas explicações reducionistas.
Na economia, o terreno é mais sólido. É feito de fatos, números, estatísticas, equações.
Os fatos indicam que houve um longo processo, que não pertence a político algum, mas, sim, ao país, de conquistas das reformas que nos trouxeram até aqui.
A abertura comercial de 90 foi elemento fundamental do plano que deu certo em 94, que levou ao boom de consumo de 94 a 96, mas, ao mesmo tempo, expôs fragilidades bancárias. Se elas não tivessem sido enfrentadas com perícia e arte, o país poderia ter tido um colapso do sistema bancário que não apenas poria tudo a perder como jogaria o Brasil numa crise de dimensões incalculáveis. O Proer foi arquitetado exatamente com três critérios: era para salvar o dinheiro do correntista e investidor; não salvar o acionista do banco e punir o controlador das instituições.
Sim, nós tivemos o Proer. Mal entendido, acusado como algo condenável e que vale aos dirigentes do Banco Central da época as aflições e os gastos de vários processos judiciais. Naquele tempo, três dos maiores bancos privados quebraram: Econômico, Nacional e Bamerindus. Um enorme rombo no Banespa e outro no Banco do Brasil completavam um quadro dramático.
Sem a atuação daquele Banco Central, a história de hoje seria bem diferente.
Os perigos econômicos foram evitados também no governo Lula. O perigo da extrema crise de confiança nos seus propósitos econômicos, desfeito pelo então ministro Antonio Palocci e sua equipe de estrangeiros ao PT, como Joaquim Levy, Marcos Lisboa e outros. Naquela época, o que o PT dizia era que “nós temos alternativa, nós temos Plano B”. A sabedoria do presidente Lula foi não ouvi-los.
A capacidade de comprar leva o eleitor a apoiar os presidentes. Corrija-se, assim, a famosa frase de James Carville, publicitário de Bill Clinton. Ele cunhou o lema “É a economia, estúpido”, para explicar a George Bush, primeiro, onde estava o problema do governo dele. Diga-se no Brasil, “É o consumo!” para explicar os momentos de alta popularidade presidencial. Seja em que período for.
Se houver restrições ao crédito, se houver elevação da taxa de juros, se houver alta da inflação, isso pode ser afetado. Mas seria preciso um colapso das expectativas, como houve após a desvalorização do real em 99, para mudar radicalmente.
No terreno fino que fica entre a economia e a política, não se aconselha cantar vitórias de véspera. O político Lula parecia condenado ao fracasso depois de três derrotas em disputas presidenciais.
Era falso. Parece agora não apenas invencível, como dotado de um carisma pessoal e transferível para quem ele escolher. É incerto. Hoje, trinta meses antes da eleição presidencial, com tanta incerteza econômica vinda de fora, os cavalinhos não estão nem na chuva, nem no pódio.
Estão nas baias, à espera do muito que pode se definir na relação entre a economia e a política; naquele fino terreno onde tanto se decide.
Entrevista:O Estado inteligente
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