Como o espetáculo Terça Insana se tornou um dos mais
longevos e influentes fenômenos do humor brasileiro
Sérgio Martins
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Na terça-feira passada, o ator Marco Luque dava entrevista a VEJA no saguão do Avenida Club, uma casa de espetáculos de São Paulo, quando foi abordado por duas senhoras. "Hoje tem motoboy, né?", perguntaram. Luque respondeu que sim e duas horas depois estava no palco, devidamente trajado como o motoqueiro Jackson Five. Saudado com uma explosão de gritos e aplausos pela platéia lotada, Jackson expôs sua filosofia: "As avenidas são as artérias, as ruas são as veias e nóis é o quê? Nóis é lactobacilo vivo!". Ele é um dos grandes sucessos do Terça Insana, um dos mais longevos e aclamados espetáculos de humor do país. No mês passado, o Terça Insana deu início à sua sétima temporada. A trupe composta por Grace Gianoukas, Roberto Camargo, Agnes Zuliani, Guilherme Uzeda e Marco Luque estreou O Povo Brasileiro, show com catorze quadros inspirados – de maneira amalucada – nos escritos do antropólogo Darcy Ribeiro. Personagens já clássicos, como o boleiro aposentado Esquerdinha, se alternam com novos, como Cardeal & Arcoverde, dois japoneses que cantam sertanejo, e a princesa Carlota Joaquina.
O sucesso do Terça Insana não é difícil de explicar. Ele leva ao palco um certo "humor de caracterização", velho conhecido do público brasileiro. É a mesma comédia calcada numa galeria de tipos ou personagens que, na televisão, se pode ver em programas como Zorra Total ou A Praça É Nossa. A diferença está no texto – mais sutil e avesso a descambar para a piada chula. Grace Gianoukas dirige e cuida da redação final. Suas diretrizes estão registradas num texto que ela manda para atores que aspiram a tomar parte no espetáculo. Não são aceitas, por exemplo, imitações de famosos, piadas com minorias e novas versões de personagens que já passaram pelo show. "Octávio Mendes fazia uma freira ótima. Por que eu quereria outra?", diz, referindo-se à Irmã Selma, personagem que Mendes defendeu de 2001 a 2006, antes de se desligar do Terça Insana. A vigilância de Grace é exercida mesmo sobre quadros que já estão no palco há tempos, e com sucesso. A própria Irmã Selma teve de abandonar uma de suas tiradas. "Sempre defendi que o humor é a melhor arma contra o preconceito. Mas Grace achava uma certa anedota preconceituosa e insistiu até que eu a deixei de fora", conta Mendes.
O Terça Insana nasceu no fim de 2001. Grace, veterana do cenário alternativo na São Paulo da década de 80, foi convidada a ocupar o N.Ex.T. (Núcleo Experimental de Teatro), misto de clube e teatro localizado no centro da cidade. Ela chamou seus amigos mais próximos, os humoristas Marcelo Mansfield, Roberto Camargo, Octávio Mendes e ainda Marcelo Médici, um ator que vinha se destacando no cenário humorístico, e montou o Terça Insana. Muitos dos personagens eram conhecidos do público que acompanhava a carreira de Grace, Mansfield e Mendes – como Aline Dorel, musa do cinema viciada em Lexotan. Em 2003, a trupe se transferiu para o Avenida Club.
Ricardo Benichio |
Grace (no centro) e o atual elenco do Terça Insana, à paisana: veto às imitações e às piadas chulas |
A formação atual vem de 2006. Grace pinçou o elenco em meio a dezenas de atores que atuaram como convidados especiais do espetáculo. Cada um tem sua peculiaridade. A paulistana Agnes Zuliani tem influências da stand-up comedy, um tipo de humor popular nos Estados Unidos, no qual o comediante enfrenta a platéia de pé, munido apenas de um microfone. Não por acaso, os melhores momentos de Agnes acontecem quando ela dá vazão a essa veia, como no A Mal Amada. Uzeda e Luque, por seu turno, tinham outras profissões antes de se descobrirem comediantes. O paulistano Uzeda trabalhou como psicólogo para manter a tradição familiar e de vez em quando atuava em peças infantis. Um dia, uma paciente o viu caracterizado como o caçador da Branca de Neve. "Eu fazia um caçador meio bronco e ela achou que não dava mais para ser analisada por mim", diz. Uzeda largou a psicologia e foi atuar em peças e humorísticos até ser descoberto por Grace. No Terça Insana, arranca gargalhadas do público na pele do palestrante Luis Otavio e do caipira Vicente, fã de heavy metal e contador de causos. O também paulistano Marco Luque é um ex-jogador de futebol. Foi centroavante do Santo André e atuou em duas equipes da segunda divisão do futebol espanhol. Hoje interpreta dois dos personagens mais populares do Terça Insana – Jackson Five e Silas Simplesmente, um taxista que só transporta pessoas famosas. No início de março, Luque levou os causos de Jackson para a Mix FM.
O clima nos bastidores do Terça Insana é alto-astral. Grace é hiperativa e lembra muito os tipos que leva para o palco. Uzeda e Luque são descontraídos, ao passo que Camargo e Agnes são mais caladões. O maquiador Eliseu Cabral é uma espécie de consultor informal da trupe. "Eu dou palpites sobre os personagens e ajudo a passar o texto", diz ele. Após cada quadro, é comum que os humoristas avaliem seu desempenho ao lado dos companheiros de elenco. "As piadas do índio agradaram, mas eu não posso rir quando ele diz que foi ao Parque Trianon e aceitou uma carona de um diretor de teatro", observou Camargo ao sair do palco na semana passada (o Trianon, à noite, é reduto de garotos de programa em São Paulo).
O sucesso dos personagens rende convites de emissoras de TV e rádio. "Eu já fui convidado duas vezes para fazer o Zorra Total, mas a minha prioridade é o Terça Insana", diz Luque. Uzeda recusou um convite para estrelar uma série de comerciais de cartão de crédito. "Quero ser conhecido pelos meus quadros, não pelo cartão", afirma. É um bom negócio participar do Terça Insana. O elenco divide algo em torno de 30 000 reais por apresentação no Avenida Club e faz ao menos oito shows por mês em outros palcos, com idêntico cachê. Ainda neste ano, serão lançados dois DVDs com os melhores momentos da história do espetáculo. O grupo espera usá-los como cartão de visita para ampliar a agenda de compromissos – sobretudo em outros estados. É como diria Jackson Five: "Nóis se prolifera!".
A PRIMEIRA GERAÇÃO
Tata |
Octávio Mendes Personagens célebres: Irmã Selma, uma freira mal-humorada e piadista, e Maria Botânica, inspirada na cantora Maria Bethânia |
Dizer que o Terça Insana serviu de trampolim para veteranos como Marcelo Mansfield e Octávio Mendes seria exagero. Participar do espetáculo, contudo, certamente reforçou o cacife desses comediantes. Mansfield, que integrou o Terça Insana de 2001 a 2005, é a estrela de Nocaute, que estréia nesta semana em São Paulo. "É um show de stand-up comedy, bem diferente do Terça", diz ele. Mansfield também levou um de seus tipos para a televisão. Seu Merda, um maridão passivo, hoje marca presença no Zorra Total, da Rede Globo. Virou Seu Banana (e perdeu parte da graça). Octávio Mendes e Ângela Dip são outros pioneiros do Terça Insana que se lançaram em espetáculos-solo. Eles estrelam Humor de Quinta, ao lado do comediante Sérgio Rabello. Ali, Mendes encarna seus personagens mais famosos, como a Irmã Selma – freira um tanto perversa que trabalha como humorista para realizar o sonho (suspeito no seu caso) de fundar um orfanato. Mendes foi outro que levou um tipo para a televisão. Em A Praça É Nossa, ele é Walmir, um ex-gay. Mas quem aproveitou melhor sua passagem pelo elenco do Terça Insana foi Marcelo Médici, que interpretava o Mico Leão Dourado Gay. Ele saiu do espetáculo depois de uma temporada e, desde então, criou o show Cada um com Seus Pobrema e participou das novelas Belíssima e Sete Pecados, da Rede Globo. No segundo semestre, Médici vai atuar na nova versão de O Mistério de Irma Vap, um dos maiores sucessos de bilheteria da história do teatro no país.
Divulgação | Ricardo Benichio |
Marcelo Mansfield Personagens célebres: Seu Merda e o estressado Seu Lili | Marcelo Médici Personagens célebres: o Mico Leão Dourado Gay e o corintiano Sanderson |