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Não há dúvida de que o episódio do dossiê da Casa Civil relativo às contas pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de sua mulher, dona Ruth, revelado por Veja – e confirmado pela Folha de S. Paulo - é fato gravíssimo, que se soma e equipara a delitos anteriores na esfera do atual governo, ainda impunes.
Entre outros, cobrança de propina por parte do subchefe da Casa Civil, Waldomiro Diniz; mensalão; quebra ilegal do sigilo de um caseiro pelo ministro da Fazenda e pelo presidente da Caixa Econômica Federal; dossiê dos aloprados do PT contra o PSDB. Etc.
O agravante no caso presente é o grau hierárquico em que o delito se opera: sua origem e destinação. Concebido na Casa Civil da Presidência da República, instância mais íntima do chefe do governo, teve como alvo um ex-presidente.
Embora a Constituição diga que todos são iguais perante a lei, vale na prática a constatação de Millor Fernandes, segundo a qual alguns são mais iguais. Se a quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, há dois anos, foi um mega-escândalo que levou à lona um superpoderoso ministro da Fazenda e o presidente de um banco estatal, que se pode esperar deste, que tem como responsável o mais importante auxiliar do presidente da República – a ministra-chefe da Casa Civil e pré-candidata à sucessão presidencial, Dilma Roussef, e como vítima um ex-presidente da República?
Espantosamente, até aqui, nada.
O desdobramento do caso revela o descompromisso oficial com o decoro, a inconsciência da gravidade que envolve o caso. Diante da denúncia de Veja – devidamente documentada, goste-se ou não da revista -, a reação inicial foi de negar tudo. Tratava-se de uma farsa. Como a denúncia não era apenas adjetiva – ao contrário, estava recheada de dados objetivos e substantivos -, não era possível ficar apenas na negação. Derivou-se então para os eufemismos.
Não haveria dossiê, mas, segundo o ministro da Justiça, Tarso Genro, “um levantamento”, a pedido do Tribunal de Contas da União. O TCU, no entanto, desfez a versão, esclarecendo que não solicitou coisa alguma. A mentira (que outro nome dar?) exposta no ato mesmo de sua enunciação. Falou-se então, sem qualquer constrangimento com a negativa anterior, em “vazamento”, o que não retiraria a responsabilidade do governo, mas a atenuaria.
Mais uma vez, bastaria acusar “assessores aloprados”, como fez Lula em relação aos autores do falso dossiê contra o PSDB, na eleição presidencial passada, e assunto encerrado. Só que, na seqüência, chegou-se a um nome por trás da lambança, graduado demais para isentar a cúpula do governo de responsabilidade: a secretária-executiva da Casa Civil – uma espécie de vice-ministra –, Erenice Alves Guerra, braço direito da ministra Dilma Roussef.
Ela, segundo apurou a Folha, comandou a operação-dossiê, que teve início ainda no período do carnaval, quando pipocavam as denúncias de uso irregular dos cartões corporativos pelos altos escalões governamentais, incluindo o presidente da República.
Entre aquele momento e a denúncia do dossiê, os ministros Paulo Bernardo, do Planejamento, e Tarso Genro, da Justiça, insinuavam que havia algo de podre nas contas do governo anterior. No Congresso, o PT emulava esses argumentos, insistindo que a CPI abrangesse a administração FHC.
Paralelamente, a secretária-executiva da Casa Civil empreendia operação de Estado-Maior para montar o documento e - o que é mais grave – vazá-lo, com o objetivo explícito de intimidar a oposição e esvaziar a CPI. Pode-se até argumentar que as despesas pessoais do presidente não deveriam estar no topo da agenda política de um país com tantos problemas estruturais.
A questão, porém, é que está. E não pelo tema em si, mas pelo que nele está embutido. A verdade administrativa não pode ser instrumento de chantagem política. Se um ex-presidente delinqüiu, deve ser responsabilizado, e quem está no lugar de providenciá-lo é o presidente atual. Não pode condicionar ou negociar a denúncia, sob pena de improbidade equivalente. Mais grave ainda se o faz para ocultar ou pelo menos deixar de investigar as mazelas de sua própria administração. É o que está em pauta.
A reação de FHC de mandar abrir as próprias contas é um marco na história da administração pública brasileira. Como ele mesmo disse, nada justifica o sigilo continuado em torno dos gastos de um chefe de Estado. O argumento da segurança estratégica é circunstancial. Superada a circunstância, deve ser revelado.
O assunto parece menor, mas não é. Embute considerações de ordem ética vitais ao saneamento da prática republicana brasileira.