Sergio Fausto
Os anos de Bush filho na Casa Branca marcam o ápice da onda conservadora nos EUA. Nenhum dos candidatos na disputa sucessória, porém, é de continuidade. Nem mesmo John McCain, já escolhido pelos republicanos. Falta-lhe o que sobra a Bush filho: o fervor religioso e a visão teológica do mundo. Estará a cena eleitoral refletindo mudanças duradouras nas correntes mais profundas da sociedade americana?
É difícil exagerar a influência do fundamentalismo religioso na Casa Branca a partir de janeiro de 2001. Desde então, as mais importantes iniciativas do governo norte-americano carregaram, em altas doses, ingredientes de uma visão segundo a qual os EUA seriam uma nação cristã empenhada numa batalha moral em duas frentes: externamente, contra o “eixo do mal”; internamente, contra o secularismo patrocinado pelo “establishment liberal” (artistas de Hollywood e jornalistas do New York Times, para ficar apenas em dois ícones).
Essa visão esteve presente na justificativa à invasão do Iraque, nas restrições às pesquisas com células-tronco embrionárias, nas políticas sociais, com fundos federais fluindo preferencialmente para organizações religiosas, nas pressões pela inclusão do criacionismo, em oposição ao darwinismo, nos currículos escolares e, mesmo, mais indiretamente, na recusa cética às evidências científicas do aquecimento climático provocado pela ação humana, um dos elementos justificadores da retirada dos EUA do Protocolo de Kyoto.
A ascensão da direita religiosa nos EUA remonta ao final dos anos 1970. Sua estratégia foi tomar pela base o Partido Republicano, com um exército de fiéis ligados às igrejas dos ramos não tradicionais do protestantismo, chamadas evangélicas. E a partir daí estender sua influência nacionalmente. Política e religião passaram a andar de mãos dadas. “Convertam (ao evangelismo) e registrem (no Partido Republicano)” era a palavra de ordem de Jerry Falwell, líder da Moral Majority, um dos vários movimentos da direita religiosa empenhada em mobilizar a reação de uma “maioria” até então silenciosa, mas insatisfeita com o crescente domínio do secularismo na cultura e na política americanas. Eles acreditavam que, numa sociedade politicamente apática, em que o comparecimento às urnas em geral mal alcança 50% do eleitorado, uma minoria ativa e bem organizada poderia vir a dar o tom. Estavam certos.
Nos anos seguintes, a influência eleitoral da direita religiosa não parou de crescer, nem mesmo no governo Clinton, a despeito do bom desempenho da economia. Em 1994, depois de 40 anos, os democratas perderam o controle de ambas as Casas do Congresso. No mesmo ano, o Partido Republicano passou a ter maioria em 19 Legislativos estaduais, um a mais do que os democratas, tendência que se acentuou nos anos seguintes. Em 2004, nada menos que 40% do Congresso americano - 44 senadores e 186 deputados, todos, menos 5, do Partido Republicano - votou em 80% a 100% das vezes alinhado com a agenda da direita religiosa.
É nos ombros dessa ascensão que Bush se torna candidato do Partido Republicano em 2000 e duas vezes presidente da República. Reagan e Bush pai fizeram compromissos com a direita religiosa por razões de cálculo eleitoral. Bush filho é a direita religiosa. Ele próprio um cristão renascido, conceito característico das igrejas evangélicas (o renascimento decorreria da entrega da vida a Cristo, implicando um compromisso com a missão evangelizadora).
Ao que parece, a missão presidencial não foi cumprida. Externamente, basta olhar a situação do Iraque. Internamente, vejamos o que diz um relatório publicado, ao final de 2007, pelo Pew Center for Public Opinion and the Press, um dos mais respeitados institutos de estudo sobre tendências de opinião pública nos EUA. O documento traz informações sobre atitudes e valores dos americanos em relação a um amplo conjunto de temas, no período de 1987 a 2007. A tendência é clara: o conservadorismo extremado perde terreno. A cena eleitoral reflete essa tendência.
Em 1987, 51% dos americanos apoiavam a demissão de professores homossexuais pelo fato de serem homossexuais. Em 2007, o porcentual reduziu-se a 28%. A redução ocorreu em todos os grupos demográficos, inclusive entre os brancos evangélicos: neste caso, de 73% para 42%. A crença de que a aids é uma punição divina pelo mau comportamento sexual seguiu a mesma direção: os que sustentam essa posição diminuíram de 43% para 23%. O apoio a pesquisas com células-tronco embrionárias - que o governo Bush buscou restringir de variadas maneiras - cresceu 13 pontos porcentuais desde a primeira sondagem disponível sobre o tema: de 43% em 2002 para 56% em 2006, um aumento observado em todos os grupos demográficos.
Não parece brilhante o futuro da direita religiosa. O mesmo relatório do Pew Center mostra que o conservadorismo moral se reduz da geração nascida antes de 1946 para as gerações posteriores. A maior diferença está entre os nascidos antes e depois de 1946, mas o afastamento em relação aos valores conservadores é perceptível também quando se compara a geração mais jovem, nascida depois de 1977, com a geração nascida entre 1946 e 1977.
Isso não quer dizer que os EUA se estejam transformando numa nação laica, cosmopolita e liberal; tampouco que a direita religiosa esteja politicamente morta. Ela representa ainda cerca de 30% dos americanos, não por acaso o mesmo porcentual de apoio que restou a Bush depois de sete anos de mandato e uma coleção de desastres políticos. Mas não parece haver dúvida de que entrou em declínio o fundamentalismo religioso que influenciou um leque tão amplo de políticas, com repercussões dentro e fora dos EUA, nos últimos sete anos. É uma boa notícia para o mundo.